Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Excentricidade, desigualdade e desrespeito

Li artigo publicado neste Observatório da Imprensa (“Repúblicas estudantis, arbitrariedade e exclusão”) em que um aluno de filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) comentava a situação das moradias estudantis federais da sua universidade e a negligência da imprensa com relação ao assunto. A negligência, por sinal, é ainda a mesma que encontrei no meu curto período como repórter de um jornal de Mariana entre 2001 e 2002 – que nunca se pronunciou a respeito do problema – e de outros jornalistas de grandes veículos de comunicação nacional, que tratam as repúblicas federais de Ouro Preto sob o véu de um romantismo barato.

Em outra ponta, vivo uma realidade bem diferente na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Desde que cheguei a Vitória, acompanho a situação de amigos e colegas vindos de outras cidades do Espírito Santo e do país. As condições e os sacrifícios dos estudantes carentes da UFES, vivendo sob a pressão dos caros aluguéis da capital capixaba para que possam morar com um mínimo de dignidade e estudar, é rotina comentada e problematizada no cotidiano da comunidade estudantil. Diferente de outras universidades públicas do sudeste (como a UFMG, a UFRJ, a Unicamp, a USP, a UFV, a UFOP), a UFES não possui casas de estudantes (sejam alojamentos, repúblicas, dormitórios, apartamentos etc.), sujeitando os estudantes à especulação imobiliária desmedida dos bairros próximos aos campi (tanto o de Goiabeiras quanto o de Maruípe) ou a aluguéis mais baratos e, consequentemente, aos preços abusivos do transporte público, que não atende com qualidade a população capixaba. Há, por parte da Universidade, um auxílio financeiro que alivia um pouco o peso dos gastos para aqueles que conseguem recebê-lo, como forma de reparação por essa falta, mas que não supre a lacuna de uma moradia universitária que garanta uma melhor formação do estudante carente.

Isso obriga a maior parte desses estudantes da Ufes a trabalharem em empregos nem sempre ligados à sua área de formação para que possam arcar com tantas despesas de uma capital que pratica preços imobiliários altíssimos e de custo de vida elevado.

Valores astronômicos

Diante de um cenário de assistência estudantil precário como é o da UFES, indigno-me ainda mais com o que li no artigo e com o que vi nos anos de estudo na Universidade Federal de Ouro Preto. Indignação compartilhada por muitos dos colegas e amigos que vivenciaram comigo o sistema de moradia estudantil federal daquela universidade, carregado dos mais incompreensíveis absurdos e sustentado por um discurso vazio e sem fundamento prático.

A situação das moradias federais da UFOP é a mesma há muitos anos e vem de um tempo anterior ao da fundação da instituição, confundindo-se com a história da cidade. Com a fundação de Belo Horizonte e a transferência da capital para lá, um número muito grande de pessoas ligadas à administração estadual abandonou Ouro Preto. Já uma cidade universitária desde a primeira metade do século 19, os estudantes da Escola de Farmácia e da Escola de Minas, naquele tempo, não contavam com o auxílio de moradia das suas instituições. Abandonada, Ouro Preto era uma cidade do interior cheia de estudantes sem casa, repleta de imóveis vazios. Com isso, muitas das melhores casas de Ouro Preto foram tomadas pelos estudantes e acabaram sendo incorporadas como patrimônio da Universidade na época de sua fundação, em 1969, com a união das referidas escolas e a criação de novos cursos.

Isso faz da UFOP uma excentricidade no cenário de assistência estudantil no que tange ao seu conjunto patrimonial, uma vez que ela possui imóveis setecentistas e oitocentistas avaliados em valores astronômicos e com capacidade de recepção de boa parte do corpo estudantil, formado, em sua maioria, por pessoas de outras cidades, mas apresentando, atualmente, casas com ocupação muito menor do que sua real capacidade.

Discurso vazio

Nesta história – entre a ocupação primeira dos estudantes no início do século 20 até os dias de hoje –, a Universidade Federal de Ouro Preto deixou, por uma conivência de difícil entendimento, que os moradores das repúblicas federais gerissem o patrimônio público como bem entendessem, estipulando eles mesmos os critérios de ingresso e permanência dos estudantes nestas casas. Com isso, cada casa estipula as regras, as tarefas e as obrigações daquele que pleiteia a vaga, obrigando-o a situações que variam muito e muitas vezes são carregadas das mais variadas formas de violência (moral, psicológica e física).

Na maioria das casas, esse rito de aceitação é justificado por um discurso de seleção de pessoas que atendam a um padrão complicado e bastante vago, pautado naquilo que cada casa considera como elemento fundamental para uma harmonia e uma boa convivência, privilegiando estudantes que possuam afinidades com os atuais moradores, organizados e divididos em uma sólida hierarquia. Tudo isso para que o estudante que aceitou de “livre e espontânea vontade” passar pelos trotes de aceitação possa desfrutar do privilégio de viver com um seleto grupo de eleitos que usufruem do direito de morar em casas públicas isentas de aluguéis em ótima localização na cidade, participando, pelo resto de sua vida, de uma sólida irmandade hierarquizada.

Questionados se é lícito que os estudantes façam o que fazem nas moradias da universidade, estes se defendem atacando, apoiados no discurso que responsabiliza a omissão universitária, que, além de não gerir as casas, não cuidou do patrimônio. Tal argumento faz com que eles se sintam, por terem conservado as casas em seu alto custo de manutenção e conservação, tão ou mais donos delas do que a Universidade, tendo, pois, direito historicamente adquirido para selecionarem os seus moradores como bem lhes convier, amparados, ainda por cima, por uma resolução do Conselho Universitário, redigida juntamente com os estudantes.

No meio deste cenário, a UFOP nunca conseguiu resolver o problema nem mesmo nunca se colocou prontamente contrária ao sistema vigente. Nunca se propôs a fazer uma política de assistência estudantil que respeitasse o patrimônio público da união, dando a ele o fim que lhe compete e assumindo, por fim, a sua manutenção, nem assumiu declaradamente sua postura de omissão, pois ainda arca com gastos gerados pelas residências. Antes, desvia-se nos labirintos do mesmo discurso vazio e empolgado dos estudantes dessas fraternidades, sempre calcados no termo complicado de se explicar e de igual complexidade de entendimento (posto que não é utilizado no sentido corrente, mas antes como norma de conduta): a “tradição”.

Injustiça e omissão

Vale ressaltar que dentro deste sistema autônomo de escolha dos eleitos para morar em casas da união estão o desrespeito ao ser humano, a homofobia, a negligência ao direito de acesso do estudante carente a uma moradia pública e gratuita, além do uso indevido desta, sublocando-a para fins particulares – como no caso das laureadas festas ouro-pretanas, que geram uma grande quantia monetária para os eleitos de tal moradia.

O Ministério Público Federal interveio nessa situação há três anos, exigindo que o reitor tomasse uma postura diante de uma situação que se colocava como crime ao patrimônio da União. Até agora, nada de efetivamente substancial foi feito. Os eleitos das repúblicas federais, utilizando-se deste termo complicado e confuso, desta norma de conduta apelidada de “tradição” ainda obrigam calouros a passar por trotes de vária ordem, fechando-se em uma “fraternidade” com leis e regras próprias, reconhecendo nelas uma autoridade muitas vezes superior em poder que a própria universidade.

Neste sentido, respeitados os contextos universitários em que construí e ainda construo minha formação acadêmica, em que a Universidade Federal do Espírito Santo – a única universidade pública de todo o Estado – não oferece nenhum tipo de moradia pública aos estudantes dos campi situados na capital, e a de outra, a universidade federal de Ouro Preto, que dista aproximadamente 150 km de outras duas universidades federais que oferecem moradia estudantil que privilegia estudantes carentes (a UFMG e a UFV) e que desperdiça espaço, patrimônio e bens públicos com os poucos eleitos que suportam a massiva opressão de uma escolha batalhada por meses, indigna-me profundamente.

A conivência com a injustiça e com a omissão das instâncias universitárias da UFOP é uma postura complicada para qualquer estudante, tanto da referida universidade como de qualquer outra. Entre a troca vazia de falas entre quem tem mais direito – se os estudantes que mantiveram o patrimônio ou se a universidade, dona legítima – espero só o cumprimento da lei. Espero que um estudante carente possa ser direcionado a morar em uma casa da universidade por um órgão universitário competente e legalmente amparado e não mais precisar se enquadrar em uma irmandade e ser avaliado por colegas que não têm preparo moral nem amparo legal que os permitam tal avaliação e outorga de direitos. Espero o cumprimento da Lei, acima de qualquer discurso de tradição. Lei que, em assuntos referentes a gestão de patrimônios públicos, de fiscalização e cobrança de seus responsáveis legais, é a garantidora e mantenedora da democracia.

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[Danilo Barcelos Corrêa é professor e doutorando em Letras na Ufes]