A título de esclarecimento, já que a imprensa fragmenta tanto os noticiários que às vezes perde o fio da meada, vai aqui um depoimento inédito, que julgo importante, sobre o imbróglio de Carlinhos Cachoeira. No início de 2000, fui convidado pelo ex-diretor operacional da extinta Loteria do Estado de Minas Gerais (Lemg), Mário Márcio Magalhães (tio do deputado estadual Alencar da Silveira, PDT/MG), a escrever um livro sobre o jogo de azar no Brasil. Seria uma obra que defendesse a legalização do jogo. Pelo serviço de ghost writer (escritor fantasma), receberia algo em torno de R$ 75 mil. Combinamos que o título seria O jogo da verdade – A fantástica e milionária indústria do jogo e a hipocrisia da lei que o proíbe no Brasil há mais de meio século.
Elaborei o material com base em pesquisas e entrevistas com empresários do setor e contraventores do jogo do bicho. Procurei em Brasília o senador Romero Jucá, então relator da Comissão de Assuntos Sociais – onde estava o projeto que pedia a legalização do jogo de azar no Brasil – para adiantar o seu parecer sobre a matéria e convidá-lo a fazer a orelha do livro. Conheci o senador durante minha passagem como repórter pelo Congresso Nacional e conhecia a sua posição favorável à liberação dos jogos de azar no país. Jucá nos adiantou o seu parecer favorável e aceitou fazer a orelha do livro, na presença de Mário Márcio Magalhães.
O livro estava praticamente pronto quando fui informado que, reunidas em Londres durante um encontro entre os maiores fabricantes de máquinas para bingos do mundo (do qual Mário Márcio Magalhães participou), as empresas até então interessadas na aprovação do projeto de legalização da jogatina no Brasil mudaram a estratégia e não queriam mais o livro. Pelo que entendi, temiam a resistência do governo, que não queria perder os ovos de ouro da Caixa Econômica Federal para o mercado privado e abortaram a ideia de defender a liberação do jogo. Basta dizer que os oito jogos do portfólio da Caixa renderam, em 2001, a bagatela de R$ 2,8 bilhões.
A Cirsa e Cachoeira
Diante dessas gigantescas cifras da Caixa com os jogos, os contraventores acharam melhor continuar pagando propina a políticos e policiais para manterem os seus negócios errados – mas livres de impostos – do que correrem o risco de conseguir a legalização do jogo e não aguentar sobreviver na legalidade. Viraram uma espécie de contraventores residuais, aqueles que não se adaptam mais ao mundo dos negócios legais, sujeitos a regras, fiscalizações rigorosas, impostos altos e os demais ônus do mercado empresarial lícito.
Essa era a dura realidade do setor privado de jogos de azar no país diante da possibilidade de o jogo ser liberado porque o governo compensaria a perda da exclusividade da Caixa para explorar o seu portfólio com uma carga de impostos insuportável. Fora as regras do jogo que seriam curtas e exigentes o bastante para impedir, por exemplo, que conhecidos contraventores participassem do bolo.
Entre as empresas com poder de decisão sobre a viabilidade ou não do livro, estava a gigante espanhola LG Cirsa Corporation (com um faturamento anual de US$1,5 bilhão). A Cirsa, comandada no Brasil por Dario Javier, tinha negócios em Goiás com a Gerplan, em sociedade com Carlinhos Cachoeira. A Gerplan pertencia à Jogobrás do Brasil que assumira, dois anos antes, sem licitação, os interesses da Ivisa Lotérica, que tinha um contrato com a Loteria Mineira – também sem licitação – para explorar a Sorteca (o bingo eletrônico) que não certo.
Um cano histórico
Saía a Ivisa, que entrou no esquema com inexigibilidade de licitação, e entrava a meio espanhola Jogobrás em seu lugar, de olho nos quase 40 mil máquinas de caça-níqueis existentes no estado. Importada da China, a maquininha custava em torno de R$ 2 mil e poderia render ao dono uma média de R$ 500 reais por semana ou mais, dependendo o local de sua instalação. Um negócio realmente extraordinário. A Lemg editou a Resolução 25/99 regulamentando a Vídeo Loteria Off-line Interativa do Sistema de Concursos de Prognósticos, ficando os donos de caça-níqueis interessados obrigados a recolher aos cofres do estado 301 Ufirs para adquirirem o selo de permissão de uso do equipamento.
Essas irregularidades levaram-me a denunciar o descalabro (eu havia advertido Mário Márcio que faria isso desde o início), com o escândalo resultado na queda da diretoria da Loteria e do procurador-geral de Justiça. Detalhe: a lista dos caça-níqueis selados pela loteria desapareceu e o imbróglio tomou proporções gigantescas.
Dois anos depois dessa tempestade é que fui convidado a escrever o livro defendendo a legalização do jogo pelo mesmo grupo prejudicado com as minhas denúncias, com o argumento (deles) de que eu sempre fora favorável à legalização do jogo para combater a corrupção e que em momento algum deixei de ouvi-los e de adverti-los sobre as irregularidades.
Como se vê, levei um cano histórico do grupo de Cachoeira que, aliás, fiquei conhecendo em Brasília, casualmente, sem que ele soubesse com quem estava falando. Agora veio o troco.
O silêncio da imprensa
Faço essas considerações para esclarecer o público que os escândalos de hoje, envolvendo Cachoeira e políticos influentes, eram previsíveis e fazem parte de um esquema violento para manter vivo o jogo de azar em um país que faz da jogatina um privilégio do estado, União e municípios. O decreto-lei proibindo o jogo de azar no Brasil foi assinado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, em 1946, e já nasceu errado. Depois de assinada a lei, a pedido de sua mulher, Santinha, que era muito católica, Dutra descobriu que estava matando um dos ovos de ouro do governo, que era a Loteria Federal. Resultado: ele teve que alterar a lei e a emenda ficou pior do que o soneto porque, com a nova redação, somente a União, estado e municípios poderiam explorar o jogo, o que sepultou o aspecto moral da matéria e propagou a corrupção no país.
Portanto, o Caso Cachoeira serve de reflexão sobre se vale ou não a pena continuar proibindo o jogo no Brasil e o verdadeiro papel da imprensa neste debate. Acho que não. A discussão é a mesma sobre a questão das drogas que, uma vez proibida, estimula o tráfico. Em Belo Horizonte, por exemplo, existem hoje cerca de 20 casas de bingos funcionando na clandestinidade, porém mantidas pela corrupção policial e política e a imprensa não fala nada. O dono paga horrores de propina para manter o negócio aberto.
Sou, pois, totalmente a favor da liberação do jogo para combater a corrupção, e contra a liberação das drogas porque entendo que a sua permissão reduziria o tráfico, mas estimularia o uso, o que é bem pior.
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[José Cleves é jornalista, Belo Horizonte, MG]