Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O limite entre notícia e espetáculo

É muito pequeno e quase imperceptível o instante em que um fato deixa de ser notícia de interesse público para se tornar apenas espetáculo. E é neste ponto que, quase sempre, o jornalismo hegemônico e conceitual se perde. Sempre passa do ponto. Sempre passa a divulgar apenas o espetáculo e a notícia já se foi há tempos. A ânsia de conceder curiosidades e entretenimento (o famoso jargão amplamente divulgado nas redações: “Isso dá leitura”) deixa fácil de ser jornalismo e passa a ser qualquer coisa de cultura pop, da pior forma possível. O pior é que, muitas das vezes, não houve tempo nem de um fato ser notícia e já se torna apenas espetáculo. Um caso policial, por exemplo. Sempre, em todas as hipóteses, é apenas e tão somente sensacionalista: sempre em busca do espetáculo trágico.

Não há qualquer interesse público no assassinato de uma determinada pessoa, no modo como assassinos agiram, nos requintes de crueldade, se foi uma chacina ou não. Muito menos em como foi o enterro, qual o grito de desespero da mãe, o choro do pai. Há, sim, amplo interesse em discutir criminalidade, penas, métodos de apreensão, investigação, prisão, condições de detenção, legislação penal e tantas outras consequências da desigualdade social e emocional e econômica. De toda forma, explicitam os burocratas, seria um método de alertar a sociedade sobre o “grau” da criminalidade e, implicitamente, informar sobre métodos de segurança ou mostrar as mazelas que o poder público deixa ao não exercer o poder conforme deveria. No entanto, a sensação real é apenas de entretenimento e o resto de puro alívio.

O show está pronto

Sim, existe muito de alívio ao se imaginar no lugar do outro no meio de uma tragédia. De pensar em como agiria em tal lugar, como se sentiria. O tempo do verbo tem o nome ideal: futuro do pretérito. É uma sensação de segurança tão justa quanto contrária à sensação exposta pelos burocratas para sugerir a necessidade de tal espetáculo. E mesmo que fosse algo correto em preceitos jornalísticos, a ausência de quebra, de limite, perde esta anuência. Grande parte disto é totalmente pinçada pelos próprios agentes de segurança pública, que desrespeitam todo e qualquer direito humano e a possibilidade correta de investigação por minutos ou linhas junto à mídia. Em Goiás, como exemplo, é natural a exposição por horas de suspeitos ou acusados em pé, diante de diversas câmeras, ao vivo.

Há quem diga, estupidamente, que fizeram por merecer e que devem satisfação à sociedade e, assim, devem ser expostos. Há quem, tão estúpido quanto, se valerá de uma falácia democrática de tornar essa total desumanidade na única chance dessa pessoa já execrada e condenada dar sua versão. Falas estas que, independente das quais, se tornarão tão somente objeto de questionamento das razões a se praticar um crime ou condenações acerca da “cara de pau” de negar. O espetáculo está todo pronto, basta ligar as câmeras e gravadores: é para isso que serve esse jornalismo. Embora ainda necessitássemos questionar se isso seria, de fato, jornalismo. Não tem só a ver com a crítica mais que batida sobre o sensacionalismo (em que todos sabem exatamente como bater e ninguém sabe deixar de fazer).

O momento que ninguém viu já passou

Tem a ver com a total ausência de respeito com o jornalismo, com o ser humano que assiste e com o ser humano que participa, seja enquanto ator ou como vítima. Pois bem, ponha-se no lugar da mãe que grita em um velório filmado e fotografado e com um gravador ou microfone aberto ao lado. É isso. E o jornalismo não peca neste sentido apenas quando envolve crimes. Todo o jornalismo hegemônico é recheado de espetáculo. Até um discurso político é levado para o palco, como toda e qualquer inauguração, toda e qualquer divulgação de pesquisa. Entende-se isso facilmente ao perceber a extrema desnecessidade do tal “personagem” em toda e qualquer matéria. A intenção, diz o burocrata, é “ilustrar” a matéria. Ou seja, “ilustrar” é uma mera metáfora para entreter, encantar e nada informar. Eis o tal jornalismo que se faz por aí, em todas as instâncias, sem qualquer limite.

Passa-se sempre da notícia, esquece-se dela para “dar leitura”. Desenha-se o espetáculo, cria-se até mesmo a cenografia do palco com banners ou viagens. Inventam-se ângulos, poses e declarações. Pinçam-se as mais dramáticas, melosas ou emocionais. São telenovelas forjadas em que se usa a vida humana e um imenso pretexto de informar, sem nada, de fato, interessar à sociedade. Embora haja muito de entreter, tão somente. Eis o fim e o começo e a perdição. O momento que ninguém viu e já passou há muito tempo. Quando o fato deixa de ser relevante para se tornar apenas interessante ou curioso, ou que “dê leitura”, é assim que se faz, com toda a receita e protocolo e assim que se fecha um jornal. Desde já, não há perspectivas de mudanças.

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[Vandré Abreu é jornalista, Goiânia, GO]