No primeiro fim de semana da Eurocopa de seleções de futebol – torneio que, nesta edição, acontece na Polônia e na Ucrânia e reúne 16 equipes –, algumas notícias que escapavam à alegria de uma celebração esportiva insistiram em “aparecer”. Tratavam das manifestações racistas de torcedores russos, ucranianos e espanhóis em relação a jogadores negros que integram alguns dos times na competição. Em especial, devemos destacar as agressões sofridas por atletas como Theodor Gebre Selassié, de ascendência etíope e primeiro negro a jogar pela República Tcheca, e Mario Balotelli, de origem ganesa, que defende a Itália. Além dessas manifestações, houve também algumas batalhas entre torcedores e entre estes e a organização do evento, sendo que até o dia 11/06 já haviam sido contabilizadas três mortes e mais de 300 feridos.
É necessário ressaltar que o palco para as provocações discriminatórias está armado na Europa há alguns anos; nesse sentido, o próprio Balotelli afirmou, semanas antes, que, caso fosse vítima de atos racistas, iria abandonar o campo. A resposta, patética, do presidente da Uefa (organização que cuida do esporte no continente), o ex-jogador Michel Platini, foi a seguinte: “Ele tem que se preocupar em jogar e deixar os juízes apitarem. Se sair de campo, será castigado”. O posicionamento do dirigente é sintomático sobre a preocupação oficial em relação ao ódio racial: é algo que existe, sim, mas que não deve ser levado tão a sério por aqueles que são pagos para fazer o espetáculo.
Mas por que esse descaso em relação a ações claramente criminosas? A revoltante tolerância das instâncias que administram o grande negócio do futebol europeu, infelizmente, não é surpreendente. Em consequência, parece que a possibilidade de apresentar ao público as razões de tal posicionamento condescendente torna-se uma interessante pauta para a editoria de internacional. Apenas noticiar esses acontecimentos, como se fossem fatos isolados do todo sociocultural, é perder a oportunidade de entrar em contextos amplos, complexificando os estereótipos que tanto são usados para representar povos e países – e iniciar um expurgo de concepções racialistas, muitas vezes utilizadas de forma quase inocente, mas com consequências nada ingênuas.
Cenas grotescas
No primeiro fim de semana da competição, dois meios jornalísticos abordaram temas de maneira mais aprofundada que o costume. Na Rede Globo, o repórter Marcos Uchôa apresentou matéria na qual explicava a rivalidade entre russos e poloneses – estes, de acordo com Uchôa, denominam “trabalho de russo” quando algo é de baixa qualidade. Já a revista CartaCapital trouxe texto do escritor e jornalista inglês Michael Goldfarb no qual ele busca discutir a persistência de um grande antissemitismo tanto na Ucrânia quanto na Polônia; segundo o jornalista, a palavra “judeu” é utilizada como xingamentos entre torcedores e a desorganização social e política dos dois países é fruto da implosão do comunismo. Embora possam – e devam – ser discutidas as análises de Goldfarb e Uchôa, parece ser positivo que eles tenham ido além do registro das ocorrências, perpassando alguns temas históricos.
Nesse tipo de trabalho, o jornalismo internacional pode começar a ser algo mais relevante que apenas a coleção de fatos distantes para preencher as páginas de jornais e revistas. Pensando na cobertura realizada por profissionais brasileiros (e são vários os que se encontram entre Varsóvia, Kiev e proximidades no momento), seria relevante a procura por vozes que explicassem as manifestações racistas dentro do contexto dessas sociedades, por que certos grupos são mais visados que outros etc. Uma situação emblemática é a não aceitação, por parte dos torcedores do Zenit, um dos maiores clubes russos, de jogadores negros, o que tem potencial para ressoar de maneira brutal em ouvidos brasileiros.
A questão é que tratar os europeus apenas a partir do grave problema do racismo é mostrar só uma face dos acontecimentos. Na última edição do torneio (2008), por exemplo, a campeã Espanha contava com o jogador Marcos Senna, brasileiro e negro. Segundo entrevista dada pelo mesmo ao site do G1 há poucas semanas, ele nunca passou por situações de constrangimento, sendo sempre aplaudido pelos torcedores do país que decidiu defender. Como compreender situações tão díspares que a simples divisão entre bons e maus não consegue abarcar? Nosso investimento em estereótipos, por mais comum que seja, não pode ser tomado como fato ontológico. Essas tipificações são processos, não fenômenos – têm uma dimensão histórica, raízes e estruturas identificáveis no tempo. É imprescindível tentar entender por que a tão culta e “civilizada” (péssimo termo, sempre) Europa produz cenas grotescas de indivíduos agredindo esportistas por causa da cor de sua pele, de sua religião ou simples local de nascimento.
Museu imaginário
A atividade de noticiar o mundo é, certamente, muito mais complexa do que à primeira vista pode parecer, e a atenção dada à contextualização das informações é um fator de peso para a constituição de uma cobertura relevante. Obviamente, o jornalismo vive com a necessidade de racionalização do tempo e aprofundamentos vão, em geral, contra a lógica dos processos de produção. Apesar disso, é primordial a preocupação com as formas pelas quais esses contextos são estruturados e apresentados.
O acadêmico português Nelson Traquina observa que o jornalismo internacional (para nossos fins aqui, a cobertura e veiculação de notícias sobre o que acontece no ambiente externo) tem entre seus pressupostos um papel pedagógico. Este é exemplificado pela necessidade de contextualização dessas notícias, visto que o material traz realidades por vezes extremamente distintas da maioria do cotidiano dos consumidores. Sem dúvida, contar o que acontece em locais distantes (de nós, é importante ressaltar) do mundo é uma atividade que requer grande esforço e vai muito além de apenas traduzir notícias vindas por meio de agências estrangeiras. Assim, as formas de enquadramento das informações jornalísticas apresentam uma importância estrutural em relação aos acontecimentos, influenciando na constituição dos estereótipos e do próprio museu imaginário que sempre acionaremos ao consumir notícias que tratem de outros povos e países.
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[Ivan Bomfim é doutorando em Comunicação e Informação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul]