Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Diferenças que assombram

Embora controverso, pela pressa com que foi feito e pelo limitado número de consultores, o acordo ortográfico segue o velho provérbio latino: os costumes são os melhores intérpretes das leis.

A língua portuguesa é hoje a sétima ou talvez a sexta mais falada no mundo, atrás do mandarim, do hindi, do inglês, do russo, do árabe e do espanhol. Mas não se fala o português do mesmo modo nos lugares em que é a língua oficial. Todavia o acordo ortográfico, como ocorreu com o árabe, forçou uma padronização no modo de escrever. O árabe é falado em mais de 20 países de maneiras diferentes, mas todos os que escrevem em árabe escrevem do mesmo modo.

Coube aos brasileiros a liderança no processo de padronização mundial do português, mas ainda devemos a simplificação no modo de escrever.

A ortografia é pouco mais do que uma convenção. Em muitas palavras predominou a etimologia na hora de escrevê-las, mas em muitos casos essa providência não é recomendável, sendo mesmo desaconselhável e em alguns outros até impossível.

O modo de escrever a língua portuguesa está sendo simplificado no Terceiro Milênio. É uma providência tardia. Muitas outras línguas simplificaram suas respectivas ortografias ainda no século 19. Contudo, o Brasil comete quase sempre um duplo erro. Demora a tomar uma providência e quando o faz deixa entrevisto que a demora não serviu para nada. Nem para pensar sobre conveniências, inconveniências, modos de aplicá-la, etc.

Sutilezas

O acordo ortográfico tornara-se uma necessidade. Mas por que tanta pressa? Muitos problemas decorrentes das mudanças poderiam ter sido evitados, se mais e mais diversificados usuários da língua escrita tivessem sido consultados. Não o foram. A consulta foi obra de pequeno grupo de iluminados, todos com obra lexicográfica de referência.

Ainda assim eles não foram o problema. Ao contrário, foram parte da solução. O problema foi que só eles foram consultados. Aliás, a nação decisiva para a implantação do acordo ortográfico foi São Tomé e Príncipe, com área de 1.001 km² e população de apenas 170.000 habitantes. No Brasil, seria uma cidade de médio porte.

Complexas sutilezas ainda separam o português do Brasil do de Portugal e das nações africanas de língua portuguesa. Um exemplo recente é "kuduro", dança e música surgidas em Angola, já chegadas ao Brasil, assim designadas por força do meneio que mantém firmes as nádegas e os quadris.

Aqui ainda não decidimos como grafar. Provavelmente terá a troca de k por c. Na África portuguesa, como em Portugal, "kuduro" pode ser palavra canônica, mas no Brasil cheira a palavrão.

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[Deonísio da Silva é escritor, doutor em letras pela USP, vice-reitor da Universidade Estácio de Sá (RJ), membro da Academia Brasileira de Filologia e autor de, entre outros, Lotte & Zweig]