Diferente dos filmes que já abordei neste Observatório (O Informante e O preço de uma verdade), Mera Coincidência (1997) não tem compromisso ético algum com o público e muito menos precisa tomar uma atitude louvável para salvar a reputação de alguém ou lutar pela liberdade de imprensa, direito supremo da sociedade nos países onde a proposta democrática vigora.
Assim como Mera Coincidência não tem a seriedade dos filmes acima citados – sarcástico e engraçado – em determinadas passagens é, no bom sentido, um pouco bobo. É improvável também, principalmente no tocante referente à guerra inventada contra a Albânia e um herói forjado a fim de valer popularidade ao misterioso presidente candidato à reeleição.
Porém, vale a pena abordar tal filme justamente para uma medição de atitudes, a começar pelo ponto que retrata a questão ética. Até onde um assessor, interpretado por Anne Heche (Winifred Ames), vai para livrar o cargo de um político ou cumprir uma ordem dada? Vale lembrar que no enredo do filme não fica claro que tipo de assessora é a personagem Winifred Ames. O segundo ponto é a dúvida gerada sobre o que realmente é verdade. Se uma guerra pode ser criada em estúdio, o que não se pode inventar com a ajuda de um aparato tecnológico? O filme nos traz a realidade, primeiro ao criar uma guerra factoide, coisa que os Estados Unidos já fizeram – não nos termos do filme, mas relatando explicações não tão plausíveis para invadir um país e contando com a conivência das Organizações das Nações Unidas (ONU). Segundo, e principalmente, quando o escândalo de abuso sexual do candidato misterioso à reeleição estoura, nos faz facilmente, lembrar de Monica Lewinsky e Bill Clinton. Escândalo este, ocorrido em 1998. O filme foi lançado em 1997. Mas tudo isso, talvez seja apenas uma mera coincidência.
A edição da “guerra”
O enredo do filme se passa da seguinte forma: o presidente em exercício dos Estados Unidos está em período de reeleição, o que para os críticos de TV será fácil, bem como toda candidatura desse tipo. Porém, um fato detonará, momentaneamente, a antes fácil reeleição do presidente misterioso. O caso de escândalo sexual tem envolvida uma jovem que frequentava a Casa Branca. Com isso, a popularidade presidencial fica em xeque. É aí que entra a personagem Winifred Ames, interpretada por Anne Heche. Esta entra em contato com o melhor e inescrupuloso profissional do marketing dos EUA, Conrad “Connie” Bean, vivido por Robert De Niro, que de pronto avalia a necessidade de se criar um fato maior para abafar o escândalo sexual. É nesse ponto que entra o personagem de Dustin Hoffman, o renomado roteirista Stanley Motss.
Em reunião na mansão de Motss, ele e “Connie” Bean resolvem criar uma guerra de ficção. Ames, a primeira assessora do presidente, duvida de tal ideia, afirmando que a mídia e a população jamais acreditariam em tal fato. A ideia parte do princípio do livro 1984, de George Orwell, no qual “guerra é paz”. Ou seja, uma guerra une um país desunido e gera a comoção necessária para o governante tomar a atitude que bem entender. Ao questionar a dupla Motss-Bear, Ames ouve o argumento: “Está na TV, não está?” Aí, começa a questão ética, principalmente nos meios digitais, nos quais a manipulação passa despercebida pela maior parte do público, de maneira especial no Brasil, onde a maioria da população só se informa pelo noticiário televisivo.
No estúdio, a guerra é criada com requintes emocionais fortíssimos. Uma atriz passa correndo com um gato nos braços pelos restos de uma ponte bombardeada. Ao fundo, um cenário em destruição e a dor estampada no rosto da atriz. Após a edição da “guerra” de estúdio, a imagem roda os Estados Unidos e, como previsto, todos caem na história.
Herói morto
Agora, que a história foi engolida, são necessários os clichês. Toda guerra tem um herói. Para tanto, o trio que conduz as armações consegue um personagem perfeito para suas intenções. Surge, então, o personagem Woody Harrelson, sargento William Schumann, preso em um distante presídio e libertado a mando do governo norte-americano. Schumann é uma pessoa insana que toma remédio controlado, o que para o Motss e “Connie” Bean não é um problema. A justificativa disso é que a tortura deixou o sargento perturbado. Antes de irem buscar o “herói” de guerra, mais uma vez Motss cria o símbolo da guerra. Sapatos amarrados nos cadarços e pendurados no poste. O sargento ainda ganha uma música, viciante tais quais os jingles das campanhas eleitorais. “Nós vigiamos as fronteiras americanas…”, em tradução.
Porém, ao voltar para casa após uma parada do avião “da expedição resgate”, Schumann invade uma casa, após ver uma adolescente, e acaba morto pelo pai da moça. O que parecia ser um problema sem precedentes, vira a melhor das alternativas, pois um herói vivo é a glória, mas um herói morto é a transformação de um homem em mito ou santo. Para aumentar a comoção geral e a motivação do país em volta do presidente-candidato que está “lutando contra” os albaneses, a música tema e os sapatos com os cadarços amarrados e pendurados nos fios elétricos tomam os EUA.
Informações plantadas
Ao final, o objetivo é alcançado. O presidente misterioso alcança a reeleição com nada mais, nada menos, de 92% dos votos. A assessora Ames, o marqueteiro “Connie” e o roteirista Motss comemoram o sucesso da empreitada. O final do filme é surpreendente e termina como começa: com manipulação. Mas não vou revelar o final a fim de não estragar a surpresa daqueles que não assistiram ao filme ainda. Porém, ao final, você, telespectador, já não lembra mais o motivo que a “guerra de estúdio” começou.
Mera coincidência não é somente uma crítica às assessorias e equipes políticas de candidatos. É uma crítica sensível aos veículos de comunicação que acreditam e compartilham da manipulação, pois dela alguns vivem para aumentar a audiência e vender jornais e revistas. A ética, aqui, passa pelo fato da não verificação das informações recebidas das assessorias e, principalmente, das informações criadas para gerar notícia que as assessorias, sejam elas de imprensa ou política, tentam plantar nos veículos de comunicação, não para enganar estes, mas sim, a sociedade.
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[Bruno Rebouças é jornalista, Natal, RN]