Presencia-se na atualidade uma concepção difundida de que a lógica capitalista, com o auxílio da publicidade, especula a felicidade como dependente da satisfação dos desejos materiais do homem.
Tal fato contraria a ótica do início do século 20, como observa o sociólogo Max Weber no livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, onde eram as leis suntuárias que mostravam ao ser humano o que deveria ser consumido e o que era preciso fazer para ser feliz. Isso mostra como a sociedade moderna, por influência ou não da publicidade comercial, pode se organizar diante da felicidade. Nisto não parece haver implícita ideia religiosa que prometa o paraíso na vida eterna. Pelo contrário, como evidencia o pai da psicanálise, Sigmund Freud, talvez a felicidade consista em poder do narcisismo.
Nesse contexto, podemos deduzir que o discurso publicitário leva muitas vezes o indivíduo a acreditar naquilo que é dito e a lutarem e buscarem todo o prazer proporcionado pelo consumo daquilo que é anunciado. O significado das mercadorias associadas como valor de uso, passa a ser disseminado como dizendo respeito a características que representam o ideal de felicidade da sociedade, por exemplo. Para a publicitária e mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Lívia Valença da Silva, “esta felicidade abrange uma realização pessoal e profissional que envolve boa aparência e desenvoltura, aprovação social, conforto e bem-estar, estabilidade econômica, status, sucesso no amor e no mercado de trabalho, entre tantos outros elementos”.
Bens descartáveis
Seguindo essa linha de raciocínio, o psicanalista Jurandir Freire Costa, na obra A ética e o espelho da cultura, enfatiza que o homem tem muitas vezes a tendência de acompanhar as metamorfoses sociais, e com todas as mudanças no cotidiano, acaba moldando-se as mesmas, sem muitas vezes se questionarem. Mas, segundo o psicanalista, quando o sujeito se apercebe num emaranhado de atribuições disseminados pela publicidade que nem sempre foram pensadas e analisadas, é que chegam os conflitos e desamparos, porque perdem muitas vezes a noção de singularidade para serem mais um na multidão.
Com efeito, o sociólogo Jean Baudrillard frisa que na cultura do consumo, na qual o homem contemporâneo se encontra inserido: “Como a ‘criança-lobo’ se torna lobo à força de com ele viver, também nós, pouco a pouco nos tornamos funcionais. Vivemos o tempo dos objetos; quero dizer que existimos segundo seu ritmo e em conformidade com sua sucessão permanente” (trecho extraído do livro A sociedade do consumo).
Por conseguinte, e com todas as mudanças ocorridas no contexto social vigente, bem como a produção de bens materiais em larga escala, muitas vezes se sofre a influência dos bens produzidos. Contudo, esses bens propagandeados afiguram-se cada vez mais descartáveis, pois já não se tem mais quem herde o sentido moral e emocional que eles no início do século 20 materializavam. Isso fez o jornalista Arnaldo Jabor carecer que “o futuro virou uma promessa de aperfeiçoamento de produtos com uma velocidade que fez do presente um arcaísmo em processo, uma espécie de passado ao vivo em decomposição”.
Sistema publicitário é um código
Ademais, atualmente o pensamento mais comumente evocado parece com um gozo excessivo proporcionado pela conquista do desejo de consumo aspirado pelo indivíduo. Isso tem tornado os homens vivenciadores de crises de referências, como bem atestam alguns psicanalistas, à medida que percebem que não só a mídia (publicidade), mas, o meio que o cerca tem muitas vezes a capacidade de artificializar as relações humanas, fazendo com que não tenha vontade própria, realizando o desejo e a vontade dos outros e não as suas.
Essas crises referenciais, tomadas como categóricos da perenização do homem contemporâneo, alinham-se às tecnologias suscetíveis de mudanças e a evolução do reclamo comercial podendo ser pontuadas como “alicerçadas nas transformações sociais, subsequentes à conjunção do desenvolvimento das tecnociências, da evolução da democracia e do crescimento do liberalismo econômico, nos obrigando a interrogar a maioria das nossas certezas de ontem”, atesta o psicanalista norte-americano Charles Melman no seu livro O homem sem gravidade. Gozar a qualquer preço.
Mediante esse contexto, a propaganda comercial, que tem sido xingada por uns e bajulada por outros, se mostra também, como a mola propulsora do desenvolvimento democrático. O sistema publicitário, nada mais é que códigos que permitem traduções e ajustes de mensagens provenientes de lógicas distintas. Ou seja, através de códigos, um produto impessoal cria uma identidade que o caracteriza como inserida no universo humano, por mais distante que dele seja a origem.
Prazer, engajamento e significado
Assim, o contexto dos anúncios comerciais suspende a dúvida. proporciona ver o impossível e acreditar nele. É assistir ao mundo de “Ronaldo, o fenômeno do futebol”, por exemplo, e lutar por ele na perspectiva de uma felicidade plena e absoluta.
Na ótica de como foi exposta, a felicidade influenciada pela publicidade comercial, assemelha-se, parafraseando o psicanalista francês Jacques Lacan, como um imperativo do gozo. Ou seja, passamos de um tempo (início do século 20) em que à felicidade era um desejo, para o tempo em que a felicidade passou a ser uma ordem, um imperativo, onde se deve ser feliz, por meio do consumo de bens materiais publicizados, por exemplo. Nessa ceifa de ideias, o sociólogo Zygmunt Bauman, na obra O mal-estar na pós-modernidade, aborda o tema felicidade frente às transformações sociais, e comenta acerca dos conflitos, desamparos e crises referenciais vivenciadas pelo homem, fazendo um paralelo com o passado e o momento atual, dizendo: “Os mal-estares de anos atrás provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares atuais provêm de uma espécie de liberdade e procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais”.
Nesse contexto, Freud se refere aos “mal-estares” da nossa civilização, como nada mais que uma economia libidinal baseada no gozar. Enquanto, por exemplo, a mais-valia sustenta a economia capitalista em Karl Marx, o gozo sustenta a economia libidinal no sujeito em Freud. Argumenta que o indivíduo enquanto goza, não só no concernente a sexualidade, mas também na aquisição de bens de consumo, considera-se feliz.
Tendo em vista o anúncio cobiçoso como disseminador da felicidade e, levando em consideração o desenvolvimento tecnocientífico que promete a felicidade através do Prozac, do apartamento à beira-mar, entre outras possibilidades, o psicólogo Martin Seligman, no livro Felicidade Autêntica, expressa algo muito interessante. Diz que o homem, aceitando suas limitações diante da felicidade, esta pode estruturar-se, entre outras possibilidades, na interface entre o prazer, o engajamento e o significado.
A história e as escolhas
Prazer, em se tratando da situação agradável de quando se ouve uma boa música ou se faz sexo. Já o engajamento é a profundidade de envolvimento da pessoa com sua vida. Finalmente o significado, como a sensação de que a vida faz parte de algo maior. Salienta também em suas pesquisas, que um dos maiores erros das sociedades contemporâneas é concentrar a busca da felicidade em apenas um dos três pilares, esquecendo os outros. Sendo que as pessoas escolhem justo o mais fraco deles; o prazer. Enfatiza que o engajamento e o significado são elos indispensáveis na vida do ser humano frente à felicidade.
Mas, como se pode perceber, levando em consideração tudo o que foi exposto aqui, a felicidade se mostra como um fenômeno ambivalente. Quanto mais se tenta formalizar, não só em termos propagandísticos, como outros, mas se mostra em processo de deformalização. O fato é que, para muitos felicidade pode ser o contrário de prazer. Para outros pode ser sinônimo. Contudo, quem não quer a felicidade, única, que satisfaça toda sua ânsia? Aqui compartilho com o teólogo Pedro Demo, na sua coletânea Dialética da Felicidade, que propõe o autoconhecimento como grande valia para se atingir a felicidade, tanto para se ter a noção mais concreta das nossas potencialidade como para conhecer mais sobre nossos defeitos.
Uma proposta semelhante à da psicanálise de Freud, que não ensina o caminho da felicidade mas faz com que se questione a história vivida e as escolhas, permitindo ao sujeito encontrar um sentido para sua própria história. Enfim, os aspectos concernentes à felicidade jungida aos bens materiais e ao desempenho da propaganda comercial, tendem a impressão de que existe um fosso cada dia maior entre os motivos que levam o sujeito a agir e os valores que julgam o que se faz no que diz respeito à busca da felicidade.
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[Ronaldo Barbosa Lima é jornalista, Recife, PE]