Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A era do futebol-mercadoria

Em matéria de futebol no Brasil, são raras as narrativas que destoam o coro dos contentes. Daí, talvez, a pouca visibilidade do jornalista Juca Kfouri nas mídias tradicionais. Sua postura contra a maré, porém, nos dias de hoje é mais que necessária, em um contexto de consolidação de uma nova era no futebol mundial: o futebol-mercadoria.

100 anos se passaram daquele 7 de julho de 1912 e de lá pra cá muitos capítulos percorridos pela história brasileira. No tradicional estádio das Laranjeiras, dois clubes praticando um esporte ainda pouco apreciado pela massa trabalhadora. Era uma minoria branca, ou pelo menos disfarçada de branca, no caso tricolor, que desfilava pelo gramado com a pelota nos pés, de um lado para o outro. Apenas uma pelota e pessoas dispostas a correr! Que magia havia naquelas traves demarcando espaço para os homens empenhados em pôr a bola abraçada nas redes? Não demoraria muito para a genialidade mestiça se apropriar daqueles movimentos corporais, reinventando-o para os padrões tupiniquins. Tomava-se das mãos e pés burgueses e punha-se nas ruas, nas praças, nas várzeas, a invenção de Charles Miller. Uma verdadeira revolução proletária futebolística!

Flu e Fla, este mais que aquele, ganhavam o gosto da massa, e dentro do Maraca, arrastando multidões para a celebração do esporte, nas vitórias e derrotas. Os registros fotográficos dos arquibaldos e geraldinos são explícitos em mostrar a penetração social alcançada pelo futebol. O sufoco na entrada, as rajadas de xixi caindo do céu, o refrigerante aguado, eram sofrimentos menores diante a possibilidade de entoar o grito de gol numa falta cobrada por Zico, ou numa cabeçada certeira de Paulo César Caju. Se nas arquibancadas o importante mesmo era torcer pelo clube do coração, “tantas vezes campeão”, lá embaixo nas quatro linhas o amor se dava na mesma proporção. Foi o que permitiu conviverem durante tanto tempo os companheiros da máquina tricolor da década de 1970 e da geração Zico na de 1980.

Outro candidato a ídolo

Zico e seus contemporâneos – mal sabiam eles – encerrariam o grande ciclo do futebol brasileiro onde nas camisas dos clubes raramente se via um patrocínio. A quantidade dos patrocínios nas camisas demarcaria o tom desta transição para o futebol atual, o futebol espetáculo, de gel no cabelo no estilo Neymar. Nestes vinte anos de transição ao futebol moderno, retomado nas mãos da burguesia, as novas gerações de torcedores poderiam conversar com seus pais ou avôs e fazer um balanço do que de fato evoluiu.

Pergunte-lhes como era ir ao Maraca e dividir o espaço pacificamente com as torcidas rivais e pagar muito pouco por isso. Peça para escalarem os times marcantes e dizer o salário dos jogadores na época. Pergunte quanto tempo os técnicos permaneciam nos seus times. Pergunte se eles tinham alguma camisa do clube do coração no armário, ou ao menos um boné. Agora compare com seu armário. Veja quantos itens do seu clube você tem. Tente escalar o seu time nos últimos cinco anos. Quantos técnicos passaram por lá. Identifique cinco jogadores que têm identificação afetiva com seu time. Experimente passear na arquibancada do seu rival com a camisa do seu clube.

Com a conversa com seu pai ou avô, você terá parâmetros para medir a qualidade e intensidade da sua felicidade. São muitas, provavelmente, curtas e efêmeras. Como ir ao delírio com a presença de um Ronaldinho Gaúcho no seu time. Vibrar com os gols decisivos de Loco Abreu. E no outro dia odiar o Ronaldinho, chamá-lo de mercenário e tudo mais. E no outro dia ver Loco Abreu silenciosamente sair pela porta de trás, pois afinal eis de ser apresentado mais um candidato a ídolo, Seedorf, produtor de outra felicidade efêmera. E assim cantou a torcida do Fogão: “Não é mole não, eu tenho o Seedorf e você tem o Tufão” (personagem de um jogador aposentado da novela).

Guardiões da memória

O grito expõe fielmente os valores do futebol contemporâneo. Trata-se de ter o Seedorf ou qualquer outra mercadoria que me coloque na condição de possuidor, que se difere dos não-possuidores, os verdadeiros perdedores ou vice-campeões. Então, a geração pós-URSS vai colecionando felicidades efêmeras consumidas na mesma velocidade em que se lançam novos uniformes e “terceiras camisas” com desfile de moda ostentando novos patrocinadores, os reais senhores do futebol mundial.

Nos 100 anos de Fla x Flu, o Engenhão de baixo de chuva foi o palco merecido para o futebol patrocinadíssimo e narrado por Galvão Bueno, que tenta apresentar-se como atraente e digno de atenção por parte dos torcedores. No campo, jogadores, com salários astronômicos e sem nenhuma identificação com seus clubes, e nas cadeiras, comportados, torcedores e torcedoras vestidos com seus apetrechos variados nas cores rubro-negra e tricolor, sedentos por novas mercadorias portadoras de um suposto objeto de desejo. Ainda bem, tudo isso não combinaria com o velho e tradicional Estádio Jornalista Mario Filho, na iminência de ser privatizado, com suas gerais e arquibancadas repletas de torcedores guardiões da memória de um futebol extinto na geração Zico, época dos verdadeiros Fla x Flus.

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[Téo Cordeiro é professor, Rio de Janeiro, RJ]