Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

As lições da derrota

Faz cem anos que os quatrocentões paulistas se chamam e são chamados assim, quatrocentões. Não seria o caso de, pelo menos, atualizar a conta? Afinal, seus ancestrais chegaram há cerca de quinhentos, e não de quatrocentos anos. Eles voltaram a ser lembrados nas comemorações dos 80 anos da Revolução Constitucionalista de 1932, efeméride à qual deu capa a Revista de História, da Biblioteca Nacional (Ano VII, número 82).

Ainda podemos utilizar algarismos romanos para identificar datas? Outro dia, o filósofo Renato Janine Ribeiro lembrou noFacebook que uma amiga sua teve dificuldades de aviar receita médica numa farmácia porque a data, julho, está escrita VII, em algarismos romanos. A expressão é muito curiosa, pois se é algarismo, como é que pode ser romano? Bem, nem tudo é literal. O certo é que uma profissional de curso superior, a farmacêutica, desconhecia algarismos romanos e criou dificuldade para atender à cliente, insinuando que a receita poderia ter sido fraudada. Fraudado foi o curso que ela fez. Ou o diploma que tem. Se desconhece até algarismos romanos, o que mais ignora de seu ofício?

Mas não divaguemos, fixemo-nos (ainda se pode usar ênclise em textos para a mídia?) na matéria do periódico, muito pertinente e oportuna, repleta de indagações, de que é exemplo uma, emblemática, que animou a professora e historiadora Vavy Pacheco Borges a pesquisar “a guerra que esquecemos”, quando, compulsando o Estado de S.Paulo (ainda podemos usar o verbo compulsar em textos para o distinto público?), notou que em 1926 o grande jornal paulista se derramava em elogios a Getúlio Vargas, hoje homenageado em avenidas e ruas Getúlio Vargas em todas as cidades brasileiras. Mas, por causa de 1932, essa designação é rara no estado de São Paulo.

Os livros proibidos pós-64

Não é questão de entrelinhas, é questão das linhas, elas mesmas, incluindo as linhas de pesquisa. A professora dedicou sua dissertação de mestrado e a tese de doutoramento à Revolução Constitucionalista de 1932 devido a uma discordância inicial com o orientador, Sérgio Buarque de Holanda. O célebre historiador e professor queria que ela estudasse “as monções para mapear não sei o quê… Não lembro mais”, ela diz. E graças àquela discordância inicial, somada à sábia orientação e humildade daquele grande homem, que aceitou orientá-la em outra pesquisa, quem ganhou foram leitores e cidadãos.

Vavy Pacheco Borges aprendeu a lição e passou a exercê-la junto a seus orientandos também: “Sempre que vou orientar um trabalho ou estou numa banca, pergunto: ‘Por que você escolheu esse tema?’ É muito importante a pessoa perceber a sua ligação emocional com o assunto.”

Não sabia de sua recomendação quando escolhi como tema de meu doutorado na USP os livros proibidos pós-64: eu tinha sido preso por meu conto de estreia, na década de 1970, e na seguinte defendi a dissertação de mestrado em 1981, na URGS, e a tese de doutorado, na USP, em 1989, sobre livros proibidos, com ênfase especial no caso Rubem Fonseca. E isso me tocou quando lia sua entrevista para fazer este texto para o Observatório da Imprensa.

O interesse pela Independência

Diz ela: “A minha família odiava o Getúlio”. “Eu vinha de uma família ligada à burguesia, que tinha toda a afinidade com o Estadão. Então como é que aquele jornal poderia, em 1926, elogiar o Getúlio Vargas?” Ecoam em muitos brasileiros a pergunta feita à pesquisadora e professora por uma das funcionárias do Museu da Polícia Militar: “Eu gostaria que a senhora me explicasse por que essa Revolução de 32 é a única guerra que os que perderam são os que comemoram e os que ganharam não querem nem saber”.

O escritor e jornalista gaúcho Janer Cristaldo é um dos mais inconformados com a celebração, mas chutatis chutandi os gaúchos também fazem o mesmo, ressalvadas as diferenças de que foram vitoriosos por longos dez anos no século anterior, quando pelejaram pela independência da República Piratini (20 de setembro de 1835 a 1º de março de 1845) que, dez anos depois de proclamada, se desfez para que o Rio Grande do Sul fosse de novo incorporado ao então Império do Brasil.

E ainda hoje as comemorações da Revolução Farroupilha, como o movimento passou à História, semelham ser mais importantes para os gaúchos do que as celebrações da própria Independência do Brasil. A data de 20 de setembro, que inaugura os festejos da Revolução Farroupilha e a obra cultural de autores gaúchos dedicada ao tema ultrapassam em muito o interesse pela Independência.

Leitura vale o tempo perdido

Em Santa Catarina, o estado vizinho, onde também foi proclamada a República Juliana (24 de julho de 1839), independente por menos de um semestre (findou em 15 de novembro daquele mesmo ano), a data obviamente não tem tanta importância. De todo modo, ficam da entrevista da professora temas a desenvolver muito interessantes. Ela dá ainda uma lição de criatividade, mergulhada que está em novo projeto: a biografia do cineasta Ruy Guerra, um dos mais censurados no período pós-64, parceiro de Chico Buarque, igualmente perseguido por aquela censura epocal.

E já no final da entrevista, diz ela: “Às vezes, na divulgação, as coisas acabam sendo simplificadas, é verdade. Temos de ter cuidado.” E sua autocrítica é saborosa e reconfortante: “É porque, na maioria das vezes, os historiadores contam mal, de um jeito chato, complicado, desinteressante. Agora, os divulgadores muitas vezes falsificam, simplificam.”

É leitura altamente recomendável, não apenas a entrevista da professora, mas esse número especial da Revista de História da Biblioteca Nacional, cuja editora interina é Vivi Fernandes de Lima, e é mantida pela Sociedade de Amigos da Biblioteca Nacional, cujo presidente é Jean-Louis Lacerda Soares.

Os leitores tenham certeza de que não vão se chatear com mais uma entrevista. Esta é uma daquelas cuja leitura vale o tempo perdido.

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[Deonísio da Silva escritor e professor, tem 34 livros publicados. É autor dos romances históricos Avante, soldados: para trás (10ª edição), já traduzido para outras línguas, e Lotte & Zweig (2ª edição), ambos publicados pela Editora Leya. É vice-reitor da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro]