Em maio último foi comemorado o centenário de nascimento de Axel Springer, o poderoso editor alemão e dono de diversos jornais. O primeiro foi o Hamburger Abendblatt, que começou a circular em outubro de 1948, inicialmente com uma tiragem de de 60 mil exemplares, mas o mais famoso deles é o Bild. Em 23 de junho o jornal mais polêmico da Alemanha completou 60 anos (ver, neste Observatório, “Bild completa 60 anos esbanjando baixaria“).
A editora Axel Springer e o Bild são inseparáveis na percepção midiática do país. O prédio da editora, em Berlim, fica no bairro multiétnico de Kreuzberg, a pouquíssimos metros do jornal liberal de esquerda Die Taz – ambos na Rua Rudi-Dutschke, assim batizada em homenagem ao líder do movimento estudantil de 1968.
A picuinha entre os dois jornais não é recente, embora não tão ferrenha como na época movimento estudantil de 1968. Durou até pouco antes da queda do Muro de Berlim e ainda é suficiente para gerar polêmica na mídia e polarizar leitores.
Uma mais homéricas alfinetadas do Die Taz no Bild deu-se em 2009, com a veiculação de um comercial mostrando a reação de um leitor com o perfil de leitor de Bild, que chega ao quiosque e pede seu jornal preferido (ver aqui). Para tirar uma onda, o dono do quiosque inventa que o jornal acabou e oferece uma alternativa, o Taz. O troco do leitor do Bild vem sem delongas. Legenda final (em tradução livre): “O Taz não é para qualquer um, mas tudo bem”. Isso gerou irritação, para dizer o mínimo: logo depois das primeiras horas de exibição, a editora Springer impetrou um mandado de segurança e o comercial teve sua exibição interrompida.
O império Axel Springer
Além do Hamburger Abendblatt e do Bild, os jornais Berliner Morgepost, Berliner Kurier e o Bild am Sonntag (BamS, na abreviação em alemão) completam o império tão sonhado por Axel Springer na época que ainda cursava o ginásio e aprendia os ofícios na pequena editora Hammerich & Lesser, de propriedade de seu pai, no bairro de Altona, na cidade de Hamburgo.
No recém exibido documentário-homenagem de Eckhart Querner “Axel Springer, um editor alemão”, o socialdemocrata e ex-chanceler Helmut Schmidt é taxativo: “Desde o início eu já sabia: ele é meu adversário e eu sou adversário dele”.
O Bild e o Bild am Sonntag, principalmente, têm enorme influência no alto escalão da classe política. Com diversos formatos e públicos-alvo diferenciados, a editora conseguiu atingir e ganhar leitores em distintos setores da sociedade, inclusive na classe alta – um público até há pouco tempo não confessaria ter na mesa do café o “jornal das letras garrafais”, como é popularmente chamado.
Uma recente campanha publicitária de frases curtas, taxativas e de caráter emblemático mostrou personalidades das áreas de cultura, política e esporte declarando, sem medo de ser feliz, serem assíduos leitores do jornal. Philipp Lahm, lateral direito da seleção alemã de futebol foi um deles: “A minha opinião sobre Bild é muito positiva. É um jornal que fala de coisas que outros jornais não necessariamente falariam” (ver aqui).
Um outro spot – com o título provocador “No traseiro dos leitores” – conta com um dos atores mais populares do país, comediantes de classe B, a top model Eva Padberg e a apresentadora de TV Nazan Eckes, que esclarece: “Bild é sem dúvida um jornal corajoso” (ver aqui).
Springer na revolta estudantil de 68
No fim dos anos 1960, o tabloide Bild, com sua campanha difamadora contra os manifestantes nas ruas, alcançava o ápice do grau de ódio que não só os rebeldes acumularam contra editora e a postura reacionária que ela espelhava e apoiava. Na época, a Alemanha vivia um conflito de gerações: a dos coniventes com a ditadura de Hitler e a de seus filhos, que, além de querer acertar as contas com os pais, viam naquele momento a necessidade de quebrar com as estruturas autárquicas e a rigidez disciplinar da Alemanha e reformar/renovar a sociedade.
As manchetes dos jornais da editora Springer – na linha “os agitadores têm que ser repreendidos severamente” – cimentaram-se na percepção dos jovens do país semeando o ódio pessoal incontido por Axel Springer, anticomunista ferrenho declarado, ele e sua editora. “Springer” era usado no vocabulário popular como um palavrão, uma peste que acometia a sociedade da época.
O ponto chave do conflito entre o movimento estudantil e a editora se deu com a morte do estudante Benno Ohnesorg, durante uma passeata na parte ocidental de Berlim. Ohnesorg, que não era ativista e nunca participava das passeatas, naquele 2 de junho de 1967 decidiu fazê-lo, numa manifestação contra a visita do Xá Reza Pahlavi ao país. No meio da muvuca, viu-se num confronto com a polícia e foi baleado pelo então policial Karl-Heiz Kurras, que na época jurou de pés juntos que o tiro havia sido dado por uma falha da arma. Dois anos atrás, já com 83 anos, Kurras confessou que na época era membro do partido SED e trabalhava para a Stasi, polícia secreta da antiga Alemanha Oriental.
Políticos entre glória e condenação
Bild faz artistas, faz políticos e descobre tudo. Mas engana-se quem pensa que a sua responsabilidade é com a liberdade de imprensa. Mesmo a favor do governo de Angela Merkel, o jornal não pestanejou em publicar fotos comprometedoras do chefe do Partido Social Cristão (CSU, sigla em alemão), integrante do gabinete Merkel. Horst Seehofer, católico, adora ser fotografado com seu conterrâneo da Baviera, o papa Bento XVI. Enquanto na pacata Baviera fazia o jogo de família perfeita, em Berlim ele vivia com sua concubina, com quem teve dois filhos. Mesmo depois de a notícia vazar, Bild continuava a publicar fotos dele, colocando o lixo fora do apartamento da amante, o que ilustrava diariamente sua vida dupla.
Recentemente o tabloide provou que tem o poder de colocar um político no cargo que almeja, preparar o terreno midiático para promovê-lo e derrubá-lo se essa for a tendência do momento (ver, no OI, “Vuvuzelas para o presidente“). Bild não espera o veredicto popular para reagir. Ele age como termômetro e antecipa a indignação tentando ser o veículo da voz popular, numa estratégia muito perigosa e bem perto do fenômeno de impermeabilidade da percepção política, da alienação, ou de um conformismo oportunista dos famosos que não querem entrar para a temida lista negra do jornal.
O ex-presidente Christian Wulff é o melhor exemplo dessa estratégia meticulosa e macabra: com a ajuda do tabloide, esse político apático, sem gozar de requisitos como simpatia e credibilidade, foi passo a passo subindo na escada política – com o Bild preparando o seu caminho. Home stories com Wulff tomando café com a mulher na cozinha de sua casa eram comuns no jornal. Quando eleito presidente, achou que ocupar o cargo mais importante do Estado alemão estaria acima do bem e do mal. Sem vacilar, o tabloide o provou do contrário.
Apesar de nesse meio tempo a Alemanha ter um presidente aceito por mais de 80% da população, Bild ainda vê uma fatura em aberto. Numa edição de domingo (6/5/2012), o jornal anunciou que “Wulff retorna à Berlim em seu novo escritório e carro com motorista”. Quando a novela Wulff se encontrava nos últimos capítulos, a conversa do dia nas mesas de bar era sobre a legitimidade de um presidente, que sujou tanto a reputação do cargo, ainda obter privilégios pagos pelo contribuinte. Vira e mexe, o Bild tem sempre uma manchete alfinetando o ex-presidente. O “affair Wullf” já deu o que tinha que dar, mas o jornal não esquece e muito menos perdoa.
Um global player
Depois de assumir a chefia do Bild, Kai Diekmann influenciou a redação com seu estilo de se aproximar da alta classe política, e também com a estratégia de polir a imagem do jornal, historicamente conhecido por ser lido apenas por trabalhadores de fábricas nos horários de pausa para o café e nos botequins de esquina. Funcionou. Imagens do Fórum Econômico de Davos e outros eventos de cunho internacional, além de conversas amigáveis com notórios formadores de opinião e chefes de Estado, ajudaram-no a implementar uma nova roupagem. A amizade entre o ex-chanceler Helmut Kohl e o redator-chefe Diekmann está eternizada em sua sala com a foto do jornalista como padrinho do segundo casamento de Kohl.
No documentário “Bild faz política / Como Bild influencia a política”, os autores Christiane Meier e Sascha Adamek mostram de maneira cabal o estilo de Kai Diekmann e a atual cara do tabloide. No filme, ele fala com orgulho da amizade com Helmut Kohl e com o ex-ministro da Defesa Karl-Theodor zu Guttenberg, que renunciou em 2011 depois que foram descobertos mais de 100 plágios em sua tese de doutorado.
Perguntado sobre as picuinhas entre os jornais Bild e Die Taz, em discurso easy-going encomendado Diekmann diz: “Não somos tão diferentes assim. Na manchete do dia seguinte à eleição do papa Bento XVI, por exemplo, a nossa foi ‘Nós somos Papa’ e a do Taz, ‘Oh, Deus!’. Quando em 2005 Angela Merkel foi eleita chanceler, a nossa manchete foi ‘Miss Germany’ e a do Taz, ‘É uma menina!’”
Entre os entrevistados no documentário está o Hans-Olaf Henkel, ex-presidente da poderosa BDI (associação de engenheiros alemães): “Pelo jeito, Bild é capaz tanto de apoiar quanto fazer políticos desabarem. Enquanto isso é feito de forma responsável, tudo bem, mas quando o jornal cai nas mãos de um homem cujo sucesso subiu à cabeça, e que acha que pode andar sobre a água, isso se torna algo perigoso”.
Há 35 anos inimigo do tabloide, o escritor Günter Wallraff se mostra bem impressionado com as pesquisas meticulosas do Bild no caso do ex-presidente Wulff, mas é enfático na crítica sobre o estilo do tabloide: “Bild tem a capacidade ímpar de pescar as marolinhas e transformá-las em ondas imensas, criando artificialmente uma histeria”.
No passado, o escritor atuou incógnito na redação do Bild com o intuito de pesquisar a forma do jornal fazer notícia. Depois de descoberto, teve seu telefone grampeado pela Agência Federal de Notícias (BND, na sigla em alemão) e todas as suas ligações
eram encaminhadas diretamente para a redação de Bild, na época localizada na cidade de Colônia.
Semanas antes do seu aniversário de 60 anos, a editora Springer informou que no dia 23 de junho todos os domicílios no país receberiam um exemplar gratuito do Bild. Querendo ou não. Um blog intitulado “Não quero receber o Bild” não obteve a ressonância desejada. No dia seguinte, o jornal publicou orgulhoso: “Entregamos 41 milhões de exemplares em todas as casas do país!”.
O Bild, o editor Axel Springer e todos os seus jornais são, de fato, ideologicamente mais do que questionáveis – ao mesmo tempo em que são o retrato da Alemanha pós-guerra e de como a sociedade se modificou até chegar ao alto grau de globalização em que vivemos hoje.
O desenvolvimento do Bild foi eternizado num livro com 11 kg de peso, contendo todas as manchetes do tabloide nesses longos 60 anos. Convidados ilustres como o kaiser Franz Beckenbauer, a chanceler Angela Merkel, o ex-tenista Boris Becker puderam levar para casa a documentação da história de um país.
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[Fátima Lacerda é formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988]