O ano escolar de 1962 foi um verdadeiro desastre na casa dos meus pais: tanto eu, na 4ª e última série do curso ginasial, quanto o meu irmão, no 2º colegial, fomos redondamente reprovados com uma única diferença: meu irmão falsificou a caderneta e se deu por passado perante meus pais, enquanto eu amarguei, naturalmente, a vergonha da reprovação. Conto esta história não por nada, mas porque meu irmão, até ser descoberto o embuste, agiu, e sentia-se como se, de fato, tivesse sido aprovado e, o que é pior, veio me dando lição de moral. Ninguém me tira da cabeça: contou a mentira tão bem que até ele mesmo acreditou nela.
A mentira, cuidadosamente arquitetada e diuturnamente reiterada, assume, mesmo para o seu autor, feição de verdade. É, no meu entender, o que ocorreu com o ex-senador Demóstenes Torres. A imagem que ele criou de si mesmo, conquanto absolutamente falsa, era emocionalmente verdadeira! O Demóstenes 2, que emergiu quando caiu sua máscara, é uma outra pessoa a quem nem ele mesmo reconhece.
Em seu discurso na véspera da cassação ele diz, a certa altura: “Fiquei semanas inteiras assim, olhando para o vazio, fitando o infinito, com vergonha dos amigos, não por ter feito algo reprovável, mas por me sentir pequeno diante da onda de perseguição, diminuído, acuado, sem poder de reação, vendo, ouvindo e lendo impropérios. A mídia pode criticar, com a má vontade que está se tornando costumeira, mas eu tinha de dizer, como o fiz no Conselho de Ética, que, quando imaginava que não havia mais condição de suportar, vali-me da fé e fui atendido.
Assim cheguei até aqui vivo, após 132 dias de massacre, num bombardeio sem precedentes, toda semana nas revistas, todo dia nos jornais, toda hora nos sites, todo minuto nos blogs, todo segundo nas redes sociais, a todo momento na TV e em muitas notícias inventadas para me colocar, inclusive, contra parlamentares. Cento e trinta e dois intermináveis dias sofrendo o tempo inteiro as mais horrendas ofensas, sendo chamado pelos nomes mais ferozes, sentindo na pele a campanha incessante de injúrias, calúnias e difamações.
Para quem acusa, é fácil, basta escolher um termo ruim e escrever sobre o outro. Para quem vive na pele, a aflição das palavras é um desassossego sem fim. Encarar os filhos, sabendo que eles leram na internet as mais horrendas infâmias a meu respeito; ter de explicar para a neta de cinco anos que a tristeza de seu avô é fruto de algo que ela só vai entender quando crescer; e meu constrangimento ao circular entre as senhoras senadoras e os senhores senadores sem ter ainda podido explicar a cada um, a cada uma, que não mereço esse infortúnio, pois sou inocente” [blog do Demóstenes http://www.demostenestorres.com.br/posts/noticias/pronunciamento-de-10-de-julho-na-tribuna-do-senado]
“Fui a Portugal antes do terremoto que o vazamento criminoso de provas ilegais e áudios montados provocou (ocorreu) em minha vida, do tsunami que a publicação das transcrições em pílulas ocasionou (a destruição da) carreira construída com tanto esforço… e das chamas ateadas por quem amputou um mandato popular sem sequer dar chance à ampla defesa” (extraído da resenha do livro A Ira de Deus) [Demóstenes Torres, “Quando o mal vem do mar”, resenha do livro A Ira de Deus http://www.jornalopcao.com.br/posts/opcao-cultural/quando-o-mal-vem-do-mar]. As partes em itálico constituem, tenho certeza, verdades sentidas no âmago de sua alma. A mais reveladora delas é esta que foi sublinhada: “Carreira construída com tanto esforço…” Trata-se, penso eu, de uma primeira e importante confissão de culpa. Realmente não deve ter sido nada fácil interpretar, diuturnamente, o papel de paladino da moralidade. Ter-se-á utilizado do método Stanislavski [Constantin Stanislavsk (1863-1938) elaborou um método para o ator construir seus personagens] para a criação deste personagem?
Massafumi Yoshinaga
Aqui, um parênteses para uma pergunta e, desde já, peço que perdoem a minha ingenuidade: como um político tão crucialmente desmoralizado como Demóstenes Torres poderia continuar exercendo o mandato? Sei o que responderão: um belo salário, mordomias, fórum privilegiado… Mas se ele tinha tudo isto sem precisar fazer nada do que fez… Diziam, e este diagnóstico se demonstrou correto, que o império midiático dos Diários Associados deixaria de existir após a morte do embaixador Assis Chauteaubriand. Era ele quem conferia a credibilidade que viabilizava a sobrevida daquela empresa, de há muito em estado falimentar.
Todo o capital político do senador goiano estava investido na sua própria imagem de probidade, ética, intransigência na defesa do interesse público etc. E essa (falsa) imagem foi jogada pelo ralo com a divulgação das conversas telefônicas gravadas pela Operação Monte Carlo. Caso, por uma absoluta irresponsabilidade da maioria absoluta dos senhores senadores, ele mantivesse seu mandato, nem por isso recuperaria um milésimo de sua imagem destroçada que, como confessa, foi “com tanto esforço” construída.
Como já disse, repito, me preocupa o destino, como ser humano, de Demóstenes Torres. Não consigo, sinceramente, deixar de recordar a triste história daquele jovem nissei que se arrependeu (?) de ter aderido à luta armada contra a ditadura militar. Chamava-se Massafumi Yoshinaga e suicidou-se em 1976, aos 27 anos de idade, após anos vivendo em profunda depressão, como informava o obituário publicado, na época, pela revista Veja.
Missão impossível
Em entrevista concedida ao portal Geração online, o ex-guerrilheiro Celso Lungaretti, que militou com ele, fala sobre Massafumi: “[entregou-se à polícia] porque ficou sem meios de subsistência. Eu soube que ele trabalhou na lavoura, depois andou perambulando na Capital como vagabundo, chegou a dormir em barracas de feirantes no Mercado Municipal. Para piorar, a imprensa o apontava, erroneamente, como o famoso ‘japonês da metralha’ dos assaltos a banco da VPR, então o Massa era procuradíssimo. Finalmente, em desespero de causa, mandou recado ao Marcos Vinícius, seu velho guru, perguntando o que deveria fazer. O Marcos, de dentro da prisão, aconselhou-o a entregar-se à repressão, com a garantia de que não seria torturado nem teria de delatar ninguém. O Massafumi aceitou o conselho, o trato foi cumprido de parte a parte, mas ele não aguentou a rejeição da comunidade. Seis anos depois, cometeu suicídio.”
Longe de mim desejar esse final trágico para o ex-senador goiano e, neste sentido, me perfilo com as opiniões manifestadas pelo escritor e jornalista Carlos Heitor Cony que, no seu artigo “Mata! Esfola“ diz : “A causa que provocou a sua expulsão do Senado continua de pé. Seria um caso [a reassunção do cargo de procurador de Justiça] para ser decidido no âmbito de seu Estado. Ele pode responder a um processo administrativo em Goiás, com amplo direito de defesa. E se for condenado, aí sim, perderá o emprego a bem do serviço público. Fora disso, seria uma violência e uma vingança mesquinha que nenhum homem (ou cachorro) atropelado merece…” Mas não posso concordar com o Cony quando diz que, a Demóstenes, “cabe-lhe resgatar a sua imagem pública”. Para mim, francamente, trata-se de uma missão impossível.
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[Joca Oeiras é jornalista]