Entre ser considerada “baranga” ou “mequetrefe”, Geiza Dias, uma das rés do mensalão, ex-gerente financeira de uma das empresas de Marcos Valério, também réu do mesmo processo, foi qualificada como “mequetrefe” por seu advogado, Paulo Sérgio de Abreu e Silva. Os censores estão sempre de plantão: quiseram proibir “mensalão”, colocando sem seu lugar Ação Penal 470. No jogo do bicho, 470 é porco: as semânticas funcionam até por acaso.
De algum modo a palavra “mensalão”, vinda do adjetivo “mensal”, já era substantivo desde há algum tempo, nas designações da Receita Federal, mas não tinha entrado para a língua portuguesa. Os impostos pagos por mês eram designados por “mensal”, “mensalinho” e “mensalão”. Todavia nenhum dos três tinha sido ainda abonado nos dicionários.
A origem remota de “mensal” é o latim tardio mensuale, de mensis, mês, de uma raiz indo-européia -*me, que deu em grego métron, medida, e em latim metiri, medir.
“Mensalão” passou a designar preferencialmente, desde 2005, o complexo sistema de corrupção de parlamentares, identificado como “organização criminosa”, conforme denúncia oferecida ao STF por Antonio Fernando de Souza, procurador-geral da República. A nova palavra tinha sido sorrateiramente referida no Jornal do Brasil, depois explicitamente na Folha de S. Paulo (edição de 6/6/2005), após famosa entrevista do então deputado federal Roberto Jefferson (PTB-RJ).
Novos matizes
Foi a partir da Folha de S. Paulo que “mensalão” espalhou-se por toda a imprensa e por toda a mídia brasileiras, obrigando inclusive a imprensa e a mídia internacionais a criar neologismos nas línguas dos respectivos países onde circulam.
Por força da avalanche de publicações sobre os fatos conhecidos sob a égide geral de “mensalão” e ao rumoroso processo judicial, a nova palavra entrou para a os dicionários de português. E não pelo uso informal que dela já fazia a Receita Federal.
Ainda antes de ser levado a julgamento, que ora ocorre no STF, o “mensalão” já resultou na queda de vários ministros e na cassação ou na renúncia de vários deputados, incluindo o denunciado como chefe da quadrilha, o ex-deputado federal e então ministro José Dirceu. Eram originalmente 40 os acusados, depois reduzidos a 38, que respondem por oito crimes: formação de quadrilha, peculato, corrupção ativa, corrupção passiva, falsidade ideológica, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e gestão fraudulenta.
Na mesma denúncia, feita originalmente pelo procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, hoje a cargo de seu sucessor no cargo, Roberto Gurgel, o publicitário Duda Mendonça responde por operações de lavagem de dinheiro, por ter recebido do PT uma montanha de dinheiro no exterior.
O relator do processo no STF foi o ministro Joaquim Barbosa, o primeiro magistrado negro na mais alta corte do país. Dos 40 denunciados, cinco são mulheres.
No afã de isentar os denunciados dos crimes a eles atribuídos, seus advogados vêm dando novos matizes a conhecidas palavras, deslocando significados e sentidos. E passam a substituir as designações por outras, com o fim de amenizar os crimes, tipificando-os sob novas roupagens vocabulares, em outros contextos. O exemplo mais emblemático é a tentativa de reunir sob a expressão “caixa dois” todos os crimes de que são acusados: formação de quadrilha, peculato, corrupção ativa, corrupção passiva, falsidade ideológica, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e gestão fraudulenta. Outras vezes dão novos matizes a conhecidas palavras, deslocando significados e sentidos, às vezes sem atentar para o fato de que a emenda pode sair pior do que o soneto.
Arte de enganar
O advogado Paulo Sérgio Abreu e Silva vacilou entre “baranga” e “mequetrefe” no recurso tático vindo da estratégia de desqualificar os crimes mediante mudança de palavras ou de seus significados. O significado mais corrente do substantivo feminino “baranga” foi assim registrado pelo dicionário Aurélio: “Mulher muito feia ou muito maltratada, sem trato”. Como adjetivo, “baranga” designa pessoa ou coisa de “má qualidade; de pouco ou nenhum valor”.
O substantivo “mequetrefe” designa, segundo o mesmo Aurélio, o “indivíduo que se mete onde não é chamado”, tendo também o significado de “biltre, patife”. O advogado provavelmente ateve-se ao significado que lhe dá o dicionário Houaiss: “Indivíduo sem importância, inútil, insignificante; borra-botas, joão-ninguém”.
A etimologia ensina que “baranga” veio do quicongo mbalang, designando para as tribos africanas praticantes dessa língua “hérnia umbilical”, segundo Nei Lopes. E “mequetrefe” é de origem controversa. Os árabes, que ficaram sete séculos em Portugal, tinham mogatref, petulante. Os ingleses têm make-trifles, o que faz bagatelas, mas a origem remota de todos eles pode ser o latim moechus, malicioso, espertalhão, somado ao adjetivo trefe, de origem obscura, mas provavelmente do castelhano, com o significado de inquieto, esperto, hábil na arte de enganar os outros, étimo presente em trêfego, no português, com significados semelhantes.
Mensalão, baranga, mequetrefe! Como diz Cecília Meireles:
“Ai, palavras, ai, palavras/ Que estranha potência a vossa!/ Todo o sentido da vida/ Principia à vossa porta;/ O mel do amor cristaliza/ Seu perfume em vossa rosa;/ Sois o sonho e sois audácia/ Calúnia, fúria, derrota.”
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[Deonísio da Silva escritor e professor, tem 34 livros publicados. É autor dos romances históricos Avante, soldados: para trás (10ª edição), já traduzido para outras línguas, e Lotte & Zweig (2ª edição), ambos publicados pela Editora Leya. É vice-reitor da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro]