Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O julgamento republicano

No início deste ano, o caso da desocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), ganhou grande destaque na imprensa. Era um terreno particular, de propriedade da massa falida da empresa Selecta, invadido e ocupado irregularmente em 2004. Imediatamente foi aberta uma ação judicial com pedido de reintegração de posse. Segundo informações amplamente divulgadas na mídia, os moradores da comunidade instalada no Pinheirinho foram apoiados de todas as formas, especialmente do ponto de vista jurídico, por movimentos sociais e sindicais da região do Vale do Paraíba. Após os trâmites legais, quando aos envolvidos foi concedido o mais amplo e completo direito de produzir todas as provas admitidas no direito, a 18ª Vara Cível da Capital, julgou procedente o pedido de reintegração de posse, determinando a imediata desocupação da propriedade o que foi feito em janeiro do presente ano.

Na véspera da data marcada pela polícia para cumprimento do mandado judicial, o noticiário televisivo apresentou imagens chocantes de moradores armados com barras de ferro, coquetéis molotov e outros instrumentos ofensivos, declarando abertamente que não aceitavam a decisão da Justiça e que iriam resistir à ordem de despejo, com ameaças abertas a integridade física dos policiais que tentassem cumprir a determinação do judiciário. A polícia militar do estado de São Paulo não se curvou às ameaças e executou a ordem de desocupação da propriedade irregularmente invadida.

É fato que o período compreendido entre 2004 e janeiro de 2012 – ou seja, quase oito anos – seria tempo mais do que suficiente para que todos os moradores do Pinheirinho encontrassem uma moradia em local digno e adequado, especialmente porque com o apoio dos órgãos públicos e privados, bem como ONGs que os assistiam, não seria difícil obter inscrições em programas sociais do governo.

Contestar provas e apontar falhas

Cumpre ressaltar que desde o início eles sabiam que a área invadida era particular e que, portanto, não tinham o direito de ali permanecer. É importante acrescentar ainda que, segundo relatos publicados à época na imprensa local e estadual, o acesso à comunidade do Pinheirinho não era livre, o que permitia que alguns moradores locais usassem a área como ponto de tráfico de drogas, prostituição e outros crimes, longe da ação da polícia. Portanto, era fundamental que a autoridade pública desse um basta nessa situação, já que não se tratava apenas de desocupar um imóvel invadido, mas sim, de recuperar para o Estado uma área que indicava ter escolhido viver sobre leis próprias. Bem, apesar de tudo, os moradores do Pinheirinho tomaram a decisão de ficar, afrontando o próprio Estado, talvez supondo que no Brasil “descumprir a lei não dá em nada” ou, quem sabe, que “o Judiciário não iria se voltar contra eles”. Felizmente o Judiciário do Estado de São Paulo cumpriu a sua obrigação constitucional de defender o primado da Lei, deixando claro para todos que não se obtêm direitos sociais com base em agressões, chantagens e ameaças.

Atualmente o Brasil acompanha outro caso importante. O STF está para julgar o processo chamado “mensalão”, no qual pessoas do alto escalão de importantes partidos políticos – ou por eles cooptados – ligados ao governo estão sendo acusadas de diversos crimes: formação de quadrilha, corrupção ativa, lavagem de dinheiro, peculato, evasão de divisas etc. Nos processos criminais como este, a boa defesa tenta inicialmente provar que o réu não cometeu a conduta criminosa que lhe é imputada. Caso essa alegação não se sustente, a defesa tenta demonstrar que a conduta imputada ao réu não está tipificada como crime pela legislação, ou, estando, procura comprovar a existência de alguma excludente da ilicitude para justificar a referida conduta. Ora, curiosamente o noticiário recente informa que para conseguir a absolvição, como defesa no processo, dentre outras alegações e artifícios, os réus do “mensalão”iriam contestar as provas produzidas e, também apontar falhas na peça acusatória. Bem, ser considerado inocente de uma acusação criminal ou ser absolvido por falta de provas e/ou por inépcia da peça acusatória tem o mesmo resultado prático.

Com a palavra, o STF

Entretanto, é certo que qualquer pessoa de bem sempre irá preferir ser considerado inocente pela Justiça. De fato, quando o juiz absolve o réu porque não ficou convencido da culpa, considerando que as provas produzidas pela autoridade policial não foram adequadas e/ou suficientes, ou absolve o réu pelo fato da peça acusatória conter falhas e omissões que a tornaram inepta, sempre ficará no imaginário popular a seguinte suposição: se a autoridade policial e/ou o acusador tivessem feito um trabalho mais completo e abrangente em suas respectivas áreas, talvez o réu fosse condenado. Em outras palavras, mesmo absolvido não teria ficado comprovado que o réu era de fato inocente. Bem, ainda nessa hipótese no caso do julgamento do “mensalão”, não é de se estranhar que o imaginário popular começaria a desconfiar que as falhas na produção de provas e/ou na redação da peça de acusação, fossem cometidas de caso pensado, com objetivos escusos e visando a beneficiar os réus envolvidos no processo, considerando que eles estavam ocupando importantes cargos no aparato estatal.

Ora, a denúncia do procurador-geral indica que, pelo número dos acusados, sua importância dentro das instituições do governo federal, bem como por suas metas e objetivos, se trata de um grupo que se encastelou no âmago dos Poderes da República objetivando tomar para si o comando do próprio Estado. Nesse sentido, a acusação do procurador-geral dá conta que possivelmente os réus estavam convictos da impunidade, talvez supondo – como os moradores do Pinheirinho – que no Brasil “descumprir a lei não dá em nada” ou, quem sabe, que “o Judiciário não iria ousar se voltar contra eles”. Diante do exposto, é perfeitamente compreensível o pronunciamento da corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, feito para a imprensa: “Há por parte da nação uma expectativa muito grande e acho também que o Supremo está tendo o seu grande julgamento ao julgar o mensalão”, uma vez que, segundo a denúncia, estamos diante de crimes graves, cometidos por pessoas influentes, algumas delas ocupantes de altos cargos no aparato estatal, ameaçando os pilares básicos da República Federativa do Brasil.

No caso dos moradores do Pinheirinho, a Justiça do estado de São Paulo soube restaurar a quebra da ordem institucional, demonstrando que ninguém está acima das leis. No caso do “mensalão”, os olhos se voltam para Brasília, no aguardo da decisão do STF estabelecendo se os réus são culpados ou inocentes. Bem, infelizmente os réus podem também conseguir uma absolvição com base em alegadas falhas contidas na peça acusatória, ou quem sabe, em alguma outra filigrana jurídica a ser invocada, porém, nesse caso, ninguém saberá se são efetivamente inocentes, permanecendo no ar a ideia que dependendo da pessoa e do cargo ocupado, talvez quebrar a ordem institucional possa valer a pena. Com a palavra, o STF.

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[Flávio Ferreira é advogado, São Paulo, SP]