É vergonhosa a naturalidade com que se publicou uma reportagem sobre o Recife dos ricos no Diário de Pernambuco do domingo (12/8). É um texto com ar de saudade, de como era bom o mundo, nas fotos e depoimentos sobre a cidade dos anos 50 a 80. Antes de continuar estas linhas, entendam, por favor. Os burgueses têm o seu ambiente, é justo, válido e inserido no contexto que deles se fale, mas não se pense disso retirar qualquer poesia, a não ser, claro, uma poética de destruição. Queremos dizer, em termos mais chãos: a reportagem, por falta de contraste, por ausência de um ponto de vista do povo nas suas evocações, de vazio de linha crítica, insinua que a memória dos grã-finos dá a identidade do Recife.
Em português de etiqueta, que pensam ser o português educado, digo: os que vivemos no Recife desde 1950, nessa proustianice não estamos. Na reportagem ocorre uma diferença radical de classes, mas com a mesma isenção de um classificado de venda de escravos, no Recife do século 19. Com o acréscimo de um impune saudosismo, para o glamour dos “anos dourados” do Recife. Mas chega de adjetivação, passemos à prova testemunhal desse caráter da cidade. Copio trechos da reportagem, publicada em papel e online. Os negritos em destaque são meus.
“‘Na década de 1950 as pessoas estavam sempre de roupa social, o que diferenciava o dia da noite era a cor e o tipo do tecido’, lembra Bruno Perrelli. A alfaiataria da família começou com o pai, Antônio, em 1921. Ele recorda que todos queriam usar o linho importado Taylor durante o dia. ‘Quanto mais caro o linho, mais maleável. A gente dizia que quem determinava a qualidade da roupa era o vento: se o tecido balançasse era bom.’ O alfaiate acredita que o tecido caiu em desuso ao longo das décadas seguintes por conta da infraestrutura necessária para a manutenção das peças. ‘Se vestir bem não era nada prático, era preciso ter passadeira, engomadeira, toda uma série de serviços que iam de encontro à vida que começava a ser construída nas cidades’, completa…
Competição entre as matriarcas
Nos anos 1970 a praia continuou em alta, mas a moda era velejar. A cerimonialista Rose Paes Barreto, 64, era adolescente na época e frequentava com a família o Cabanga Iate Clube. ‘Todo mundo tinha ao menos um veleiro Optimist’. Nos fins de semana, o dia começava na piscina e terminava no bar, entre uma partida de tênis e outra. ‘Você sabia quem era todo mundo que estava no restaurante, todos se conheciam, bem diferente de hoje’, lamenta Rose. ‘Mais adiante, o perfil dos sócios mudou. O clube focou quase que exclusivamente os esportes náuticos’…
‘Os anos 1950 e os anos 1960 prepararam os ânimos para a década seguinte: 1970 foi a verdadeira belle époque do Recife’. Insuflado pela ideia do milagre econômico, apesar da intolerância da ditadura, o país vivia um período de esperança de desenvolvimento com a abertura do país ao investimento estrangeiro…
A casa da tradicional família pernambucana costumava ter um enorme jardim, onde aconteciam as recepções. E os motivos para reunir os amigos não precisavam ser muito elaborados. ‘Até a década de 1980 as mulheres convocavam os amigos para um cafezinho quando chegavam de viagem, quando compravam um novo jogo de talher ou uma faca elétrica’, conta Demazinho Gomes. Ele revela que existia uma competição velada entre as matriarcas: ‘Todas queriam servir o melhor café da cidade’. As cozinheiras, que deveriam ser exímias quituteiras, eram as mais disputadas. Mas não ousavam trocar de patroa, fidelidade era característica essencial de um empregado doméstico.
“Branco até no nome”
‘Não existia essa história de buffet ou casa de festas. As mulheres faziam as festas nas residências e a comida e a organização vinha da área de serviço’, conta Rose Paes Barreto. Para as festas que exigiam um toque ainda mais refinado, ninguém hesitava em chamar Bandeira, o mordomo do Palácio do Campo das Princesas. Ele era uma espécie de trunfo para as ocasiões de extrema formalidade. ‘Bandeira dava direcionamentos aos outros criados e se valia de sua experiência no palácio para aplicar as regras oficiais de etiqueta nos eventos’, diz Demazinho…”
A biografia do Recife, o caráter de exclusão da cidade é bem outro. Para esse mundo de glamour, narro da viva experiência em meu próximo livro O filho renegado de Deus. O negro em destaque é do romance.
“Antes daquela manhã de 1958, na altura do fim da segunda guerra, Filadelfo se tornara querido entre os marinheiros norte-americanos que desciam ao Ship Chandler Bar, no Porto do Recife. E na condição de amigo, ou de conhecido, ou de apenas um guia útil, conduziu certa vez um oficial da Marinha made in USA ao que de melhor havia no Recife. Filadelfo então não sabia, e até a sua última hora jamais soube, que a cidade era dividida em classes, que as pessoas de cor escura traziam na pele a marca de escravos, nem muito menos podia adivinhar que as belezas da cidade não eram belezas universais, desfrutáveis por todo e qualquer habitante. “O sol brilha para todos”, ele dizia em inglês. E por nada saber, e por ver o mundo como imaginava que o mundo o via, aquela relação entre o homem universal e os objetos universais, Filadelfo levou o seu igual para o melhor restaurante da cidade, o mais famoso naqueles anos, o Restaurante Leite. Se houvesse sobrevivido àquele século, e por alguma estranha química do tempo ganhasse outra consciência, teria dito em 2013: “Ah, o Leite era branco até no nome.” Mas ele era o guia, não? Vale dizer, ele, em vez de escudo, estava escudado pelo mariner, “um sujeito muito decente, fino, me deu vários presentes”.
“Você, não”
No entanto, para quê Filadelfo ousou? Sentado à mesa muito à vontade, estava na sua cidade, não?, muito rico, pagaria em dólar, ok?, em vez de pedir o menu, perguntou ao garçom:
“O que vocês têm aqui pra comer?”
Ao que lhe respondeu, empertigado, limpo e branco o superior vestido de criado de mesa:
“O cavalheiro aqui” – disse, apontando para o gringo – “eu atendo. Mas você, não.” “Por quê? É preciso estar de paletó? Eu estou igual a meu amigo aqui.” “De ordem da gerência, o restaurante só serve a pessoas educadas.” “Como assim? Como é que o senhor sabe que eu não sou educado? Eu falo inglês e francês muito bem.” “Você entenda… Não é por mim. Nada contra a sua pessoa. Mas atender você, não.”
Então Filadelfo começou a se exaltar e a explicar ao oficial o que estava ocorrendo. E o garçom firme, alto e inamovível:
“Você, não.” “Que absurdo!”
Os anos dourados dos burgueses
Então o criado, aquele que absorve o espírito da casa, foi ao ponto:
“Saia, por favor. O gerente diz que negro é fora do Leite.” “O quê?! Como é?” “Eu até deixei você entrar… Saia. O seu amigo, nós atendemos.” “Eu sou escuro, mas sou direito. Não sou qualquer um!” “Não vou perder o emprego por sua causa. Saia.”
Ao que, no tumulto formado, vem o português, o dono do Leite.
“O que há por aqui?” “Senhor, eu estou explicando a esse…” – e apontava para Filadelfo “que não posso atendê-lo. Mas ele não quer entender.” “Não tem mais o que explicar, respondeu o calvo, grosso e rico dono. E pegou no braço de Filadelfo: ‘Você retire-se. A minha casa tem um nome. Saia! Fora, ou eu chamo a polícia’.”
Nos anos dourados dos burgueses e na memória do Recife vão duas cidades. Como observou a minha mulher, ao ler o jornal do último domingo: “Nós vivíamos em um mundo que não chegava nem na calçada dessa elite.” São duas cidades.
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[Urariano Mota é escritor e jornalista, autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) e Os corações futuristas (Bagaço, 1997)]