Ele cresceu em meio a histórias da Segunda Guerra Mundial e, desde então, os conflitos se tornaram parte de sua vida. Nascido em Malta e radicado nos EUA, o cartunista Joe Sacco, de 51 anos, ficou conhecido após o lançamento de seu livro de estreia, Palestina, no qual conta o cotidiano dos territórios ocupados por Israel. Seus quadrinhos em estilo de reportagem gráfica e cheios de drama cativaram leitores e agora Sacco lança no exterior Journalism, uma coletânea sem previsão de lançamento no Brasil. Em entrevista por telefone, o autor, que também cobriu a guerra na Bósnia, critica o jornalismo atual e diz que pretende explorar novos temas, além do conflito.
“Somos seres visuais, movidos por imagens”
Num momento em que o jornalismo passa por uma imensa transformação por causa da internet, o senhor investe em histórias em quadrinhos para retratar situações de conflito. Quando começou a usar os quadrinhos como reportagem?
Joe Sacco– A primeira vez foi na Palestina e o resultado foi o livro homônimo Palestina (lançado em 1996). Tinha estudado jornalismo e, na época, já trabalhava como cartunista. Viajei para lá porque me senti interessado pelo tema, pela região. Pensei: “Enquanto estou aqui (em Gaza) devo fazer algo.” Comecei a tomar notas e entrevistar pessoas e isso se transformou, quase organicamente, no meu livro de estreia.
Como os quadrinhos se diferem das outras formas de jornalismo?
J.S.– Não acho que os quadrinhos tenham mais poder que outras formas de jornalismo. Acho que eles têm um poder específico, diferente. O mais importante é que, com várias imagens sobre o mesmo fato ou cenário, você consegue traçar de verdade uma atmosfera. Você consegue, por exemplo, transportar o seu leitor para uma rua em Gaza. E, em todos os cenários, no pano de fundo dos quadrinhos, você mostra como é a vida; com a repetição de cenários, isso fica instintivamente no subconsciente dos leitores. Somos seres visuais, movidos por imagens. Elas nos ajudam a entender o cotidiano daquelas pessoas no livro e a situação em que vivem.
“Journalism é uma coleção de trabalhos que fiz”
No prefácio do seu novo livro, Journalism, o senhor fala sobre a imparcialidade do jornalismo. Seus quadrinhos são cheios de drama. Como vê o desafio da imparcialidade?
J.S.– Não sou contra o conceito de imparcialidade, mas acho muito difícil um jornalista se manter objetivo em situações não familiares. Penso em mim como um ser moral. Se acho que há uma situação de forte opressão contra um grupo ou um indivíduo, quero saber a história dessa pessoa que não tem possibilidade de contar seu relato ou que precisa passar por um turbilhão de dificuldades para ser ouvida. Para mim, o interessante são histórias contadas pela visão do oprimido, mas isso não significa que eu não seja imparcial quando as encontro. Não olho para as minorias reprimidas como anjos, eu as trato como seres humanos.
O lançamento é uma coletânea de trabalhos seus. Tem reportagens de que lugares e de quais conflitos?
J.S.– Journalism é uma coleção de trabalhos que fiz para várias revistas e antologias, mas que nunca foram reunidos num mesmo livro. Em alguns casos, são situações de conflitos diretos, como no Iraque, mas há outros trabalhos, como o que fiz com chechenos no Sul da Rússia. Tentei fugir um pouco do tema da guerra, pesquisei histórias sobre imigrantes na Europa e pobreza na Índia, mas aprendi que não podemos escapar de verdade do conflito quando estamos contando a História do homem.
“A imprensa requer notícias instantâneas”
O senhor já rejeitou o rótulo de “correspondente de guerra” e disse várias vezes que se importa mais com o lado dos sobreviventes do que com os combates em si. Como surgiu a vontade de cobrir conflitos?
J.S.– Cresci ouvindo as histórias dos meus pais a respeito de Malta – que foi bombardeada durante a Segunda Guerra Mundial –, sobre como era viver em abrigos para refugiados. Então, desde cedo ouvi muitos relatos sobre a vida nos abrigos, os ataques aéreos e como as pessoas se comportavam nessas circunstâncias. Esse ângulo da história sempre me interessou, cresci com isso. Outra coisa é que, de fato, não estou tão interessado no aspecto militar dos conflitos, gosto mais de falar sobre os civis que vivem a guerra porque normalmente eles são os mais afetados, apesar de não terem poder de decisão. Nesse sentido, há uma questão de justiça humana também.
O senhor acha que o noticiário hoje deixa de lado a faceta humana da guerra?
J.S.– Acho importante cobrir todos os ângulos da guerra, inclusive os combates e a diplomacia internacional, mas acho que hoje a imprensa está sob muita pressão financeira – ao menos nos EUA e na Europa – e estão cortando gastos. Se você quer realmente saber o que acontece com civis, tem que passar mais tempo com eles. Do jeito que a imprensa está estruturada hoje, isso é muito difícil de fazer. A imprensa requer notícias instantâneas, mas nem sempre são as mais importantes.
“Nunca vou fechar a porta para o jornalismo”
O senhor já cobriu o conflito árabe-israelense, a guerra da Bósnia, a do Iraque… Qual deles o marcou mais?
J.S.– Do ponto de vista pessoal, é muito difícil escolher um conflito, um relato. Às vezes, em casa, memórias me vêm à cabeça, lembranças que há anos eu não remoía. O que mais me chama a atenção nessas situações é o quanto as pessoas aguentam e o quanto a dignidade é importante para elas. Você pode tirar muitas coisas das vítimas, mas elas se esforçam ao máximo para manter sua dignidade intacta. Elas tentam se vestir bem, mesmo nas piores situações, manter suas tradições, ser gentis umas com as outras. Quem sofre com a guerra sempre se esforça, ainda que nas mais lastimáveis circunstâncias, para manter o que o identifica como humano.
Quais são seus próximos planos?
J.S.– Meus planos ainda são muito recentes para contar, mas queria sair um pouco do jornalismo. Sinto que preciso de um tempo e tentar coisas novas, mas não significa que desisti do jornalismo. Queria tratar de temas relacionados com a natureza humana, saber por que agimos como agimos.
Neste sentido, o livro Journalismé uma espécie de capítulo final de uma parte de sua carreira?
J.S.– É uma maneira de sinalizar que estou dando um tempo em uma parte da minha carreira, mas nunca vou fechar a porta para trabalhos jornalísticos. Vou continuar fazendo isso de um jeito ou de outro.
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[Luciana Martinez, do Globo.com]