Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A batalha de Carabobo

A Venezuela se prepara para, em pouco menos de dois meses, realizar as eleições à presidência da República, definidas pelo presidente Hugo Chávez, e candidato à reeleição, como a “batalha decisiva para a consolidação da independência nacional e a construção irreversível do socialismo”.

As pesquisas de opinião quase em sua totalidade dão vitória certa ao chamado “candidato da pátria”, líder da Revolução Bolivariana. Os números variam, mas deixam claro que entre 50 e 60% dos eleitores venezuelanos devem votar pelo projeto apresentado por Hugo Chávez, que por certo foi publicado em diversas versões e distribuído gratuitamente em todo o país para, como determinou o próprio comandante, ser discutido por cada venezuelano e venezuelana. Ainda assim, é notado um constante chamado a evitar o triunfalismo e a trabalhar forte para derrotar o projeto da direita de maneira contundente no dia 7 de outubro.

A oposição parece ter se arrependido da escolha do candidato para representar os partidos da chamada “Mesa da Unidade Democrática – MUD”. O cidadão, com um passado controverso, não consegue emplacar e deixa a desejar se comparado ao último rival de Chávez. Manuel Rosales é conhecido pela torpeza dos discursos e por inúmeros casos de corrupção, o que faz dele atualmente um foragido da justiça venezuelana.

Henrique Capriles Radonski é um jovem de 40 anos, que precisamente presidia o extinto Congresso da República, anteriormente à Reforma Constituinte promovida por Chávez e o Movimento Quinta República – MVR – em 1999. Representava, naquele então, o partido Copei, sigla que dividiu o poder durante 40 anos com a Ação Democrática – AD, durante a política do chamado Pacto de Punto Fijo, um acordo de alternância de poder que permitiu à oligarquia neoliberal governar o país com uma das maiores reservas de petróleo do mundo de acordo com os interesses de uma minoria.

Em 2002, durante o golpe de Estado contra o governo democrático do presidente Hugo Chávez, Capriles liderou um grupo de opositores que invadiu a embaixada de Cuba em Caracas e prendeu, violentamente e sem ordem judicial, ministros e outras personalidades ligada à Revolução. Ex-militante da seita de extrema-direita Tradição, família e propriedade, o autodenominado “candidato do progresso” não consegue se desvincular do imaginário venezuelano, que tem presente a memória daqueles dias de abril onde a velha oligarquia política e econômica do país sequestrou a democracia por pouco mais de 48 horas.

Na falta de um candidato forte que conseguisse desestabilizar o intumbable Chávez, a oposição assume o ataque por diversas frentes.

As instituições da democracia

O sistema eleitoral venezuelano é reconhecido por observatórios eleitorais e organizações internacionais como um dos mais seguros do mundo. Um sistema que veio sendo aprimorado nos últimos anos e hoje conta com uma série de ferramentas para garantir a segurança e inviolabilidade do voto.

Começando pelo processo de identificação do eleitor através de um sistema de impressões digitais, que permite acabar com o delito de falsidade ideológica que poderia alterar os resultados finais das eleições. Apesar de a votação ser totalmente automatizada, as urnas imprimem o voto, que é depositado em uma urna de contagem manual, e posteriormente comparado às informações digitais. Além disso, cada eleitor tem o dedo pintado com uma tinta indelével para impedir o chamado “voto duplo”.

Ainda assim, quase todas as menções da oposição ao CNE obedecem à tônica da desconfiança e da insinuação de favorecimento do ente eleitoral ao candidato Chávez. Do outro lado, o chavismo denuncia que a desqualificação opositora ao Conselho Nacional Eleitoral faz parte de uma campanha prévia ao não reconhecimento dos resultados do dia 7 de outubro. Isso, apesar de o comando de campanha de Capriles ter assinado no dia 17 de julho um acordo proposto pelo CNE, com as demais forças políticas do país, incluindo a coligação que apoia Chávez, para desenvolvimento pacífico e democrático do processo eleitoral. O documento consiste no comprometimento de cada força política a submeter-se às leis e à Constituição, a competir em um clima pacífico e democrático, e a respeitar dos resultados divulgados pelo ente competente para a realização do processo. Ficam muitas dúvidas sobre o real cumprimento desta última premissa.

A “comunicação democrática”

A comunicação é um dos temas mais sensíveis da campanha eleitoral da Venezuela, principalmente porque é importante entendê-la como parte de um processo político radicalizado, onde ela, opositora ou não, cumpre um papel fundamental para a continuidade ou manutenção do status quo. Entendê-lo desta forma é abdicar-se de preconceitos ou conceitos mal formados sobre liberdade ou expressão, ou ainda, sem ilusões quanto à imparcialidade da atividade comunicacional.

Por um lado, a oposição acusa o governo de utilizar os canais vinculados ao Sistema de Meios Públicos para fazer campanha eleitoral a favor do “candidato da pátria”. Uma afirmação que poderia ser correta se não estivesse desvinculada propositalmente do contexto, para transformá-la em uma mera propaganda.

A Venezuela apresenta hoje um espectro de meios de comunicação majoritariamente privados e opositores ao governo. A radicalização do processo político no país não permite, por exemplo, que os meios privados veiculem qualquer peça publicitária do candidato da esquerda. Todos – absolutamente todos – se opõem a ter em sua programação qualquer mensagem positiva associada à figura de Chávez. O jeito foi fazer igual do outro lado também em alguns poucos meios públicos, não pela subordinação ao Estado, mas pelo comprometimento real dos trabalhadores dessas empresas com o processo político revolucionário.

Ainda assim, o CNE fiscaliza os tempos de aparição dos candidatos para a divulgação de campanhas por rádio e televisão. E a propaganda opositora fica sem terreno sólido. Um estudo publicado pelo próprio Conselho Nacional Eleitoral no dia 10 de julho mostrava que, apesar das constantes aparições do presidente Chávez nos meios públicos, ele somava somente 13% de toda a programação televisiva do país, enquanto o candidato da direita chegava aos 50%. Em um dos canais privados mais vistos pelos venezuelanos, a Venevision, Capriles tinha um acumulado de 4.500 segundos, enquanto a Chávez, o tempo dedicado não passou de 540 segundos da programação analisada. Isso, somados os meios impressos (por sinal o jornal de maior circulação no país, Últimas Noticias, é propriedade da Cadeia Capriles, como o próprio nome indica, pertencente à família do atual presidenciável da direita), ou os níveis de audiência de cada veículo, se evidencia uma realidade bem diferente do que indica a campanha opositora.

Não fossem os poucos meios públicos (16 entre impressos, rádio e televisão) construídos ao longo dos 14 anos de governo revolucionário, o povo e seu processo histórico, que inclui necessariamente a Revolução Bolivariana, seriam reféns de um sistema de comunicações que nunca deixou de ser uma dura frente de batalha do lado opositor. Vide a participação direta de empresas do ramo na conspiração que levou ao golpe de estado contra a ainda incipiente Revolução Bolivariana em 2002.

A campanha estava nas ruas

Ao anúncio da doença enfrentada pelo presidente Hugo Chávez no ano passado, muito setores da própria esquerda, além de lamentar a debilidade física do líder político, começaram a imaginar estratégias para a continuidade do processo revolucionário e, frente às eleições que se aproximavam, para levar adiante um processo eleitoral sem o maior propagandista da Revolução. Os mais otimistas, apostavam por um Chávez debilitado, mas com capacidade para vencer no voto de qualquer candidato da direita sem fazer campanha. A campanha era o governo.

Algumas das mais conhecidas medidas do governo revolucionário da Venezuela, antes criticadas por toda a oposição, tiveram que ser adequadas ao projeto da direita. Isso porque funcionaram, e colocaram a Venezuela nos índices mais positivos de distribuição de renda, associada ao desenvolvimento econômico do país.

O que a oposição critica agora já foi bem pior, quando a Venezuela era governada por eles. Os números dão uma boa pista. É verdade, por exemplo, que a inflação sempre foi uma grande dor de cabeça para os governos de turno desde há algumas décadas. Mas a inflação que hoje é usada pela oposição como exemplo da suposta ineficiência da política econômica venezuelana e que em 2010 ficou na casa dos 26%, em 1996, durante os governos do puntofijismo, superou os 100%. O governo revolucionário conseguiu quase duplicar o Produto Interno Bruto do país, assumindo o papel de gestor de uma profunda reforma no sistema de preços no mercado internacional do petróleo, base da economia venezuelana. Os novos e volumosos ingressos petroleiros a partir da segunda metade dos anos 2000, associados a uma política de redistribuição de renda através de dezenas de “missões”, conseguiu fazer do pequeno e rico país sul-americano, o “menos desigual” da América Latina, segundo dados da Organização das Nações Unidas divulgado no último dia 21 de agosto.

Não era preciso uma campanha forte. A campanha estava nas ruas, nos milhares de casas construídas e subsidiadas pelo governo para atender às famílias mais pobres, nos milhares de médicos espalhados pelo país, oferecendo atendimento gratuito aos moradores das comunidades historicamente marginalizadas, nos abundantes novos pensionados, incluídos no sistema de seguridade social, algo impensável nos governos anteriores, ou em outras dezenas de programas sociais que entre tantas conquistas, erradicou o analfabetismo, universalizou o acesso à educação e à saúde, diminuiu dramaticamente os índices de pobreza e pobreza extrema e por aí vai.

A construção do socialismo

Depois de mais de um ano de luta contra o câncer, no dia 11 de junho, durante o ato de inscrição da candidatura em Caracas, o “candidato do amor”, como também é chamado, demonstrou que estava preparado para a batalha do dia 7 de outubro. Um discurso de mais de três horas e uma energia capaz de emocionar a multidão reunida na Praça Diego Ibarra, em pleno centro histórico da capital, fez desaparecer todos os rumores de que o presidente estaria à beira da morte.

A oposição, que apresentava um candidato jovem, que deveria marcar uma mudança nos paradigmas da política venezuelana, começou a se dar conta que uma ainda inconclusa mudança de paradigmas já havia começado a ocorrer há 14 anos, quando o soldado Hugo Rafael Chávez Frias foi eleito pela maioria dos venezuelanos com o compromisso de refundar a República e fazer a justiça social exigida a gritos durante os violentos dias do Caracazo [o Caracazo é como ficou conhecida a revolta popular espontânea ocorrida nos dias 27 e 28 de fevereiro de 1989, após o anúncio de um pacote de medidas neoliberais pelo então presidente da República Carlos Andrés Pérez, representante do chamado Pacto de Punto Fijo. Três anos mais tarde, Hugo Chávez protagonizaria uma rebelião militar com o objetivo tomar o poder para responder às demandas do Caracazo. Naquele dia, Chávez pronunciaria um discurso no qual dizia que “por agora” não seria possível cumprir os objetivos propostos. Esse “por agora” foi a porta de entrada deste soldado bolivariano para a história da política venezuelana e latino-americana e o começo de uma organização política cívico-militar com o objetivo de chegar ao poder pela via eleitoral democrática].

A oposição, que havia acreditado no estado terminal do presidente como a última esperança para vê-lo longe do palácio de Miraflores, agora tem suficientes motivos para entender que o “candidato da pátria”, o “candidato do amor”, não só estava preparado para uma campanha, senão para uma verdadeira batalha, decisiva para consolidação da independência nacional e construção irreversível do socialismo em território latino-americano.

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[Leonardo Fernandes é jornalista e trabalha para o canal internacional de notícias TeleSur, com sede em Caracas, Venezuela]