Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O caso do documentário popular

São breves as iniciativas no gênero documentário no Brasil, em comparação com esse mesmo tipo de produção em outros países. Em grande parte da Europa pode-se assistir a este formato na TV aberta, algo que passa longe, ainda, da programação daqui. Em países pequenos, como a Finlândia, no ano de 2011, das 31 produções cinematográficas, sete foram documentários. Na Alemanha, existe o canal de financiamento mundialmente conhecido, inclusive usado por alguns cineastas no Brasil: a ZDF arte – segunda TV alemã. São atualmente incontáveis os modos de incentivo conseguidos através de coproduções com a televisão europeia, mas mesmo no que se conhece na grande indústria do cinema, Hollywood, também há escapes para o formato mais standard. Infelizmente, esse panorama não se adequa, ainda, às produções brasileiras.

À parte uma realidade de “produção de realidades”, pois nunca presa ao formato da reportagem jornalística comum, a realização de filmes documentários tem na sua base a reflexão e compreensão cinematográfica de um determinado ambiente e de alguns personagens reais – e de uma maneira de se “fazer história”. São conhecidos aqueles grandes documentários que não funcionaram somente como documentos de uma época, mas também, sobretudo, como um elemento imagético fortíssimo de uma compreensão dessa época.

Conversa mais longa

Assim se colocou e se coloca Eduardo Coutinho ao estender as “imagens do povo” na periferia brasileira, já que todo o projeto de mudança cultural de uma geração do cinema e política, que andavam juntos, foi por água abaixo. Coutinho, atualmente, problematiza tanto a tomada, a presença da equipe, a postura do personagem real encarando o aparato de filmagem, a performance da mise en scène, todo o dispositivo de representação de uma realidade a partir da criação da cena documental. Fazendo documentário, ele chegou novamente às telas do cinema mainstream nacional e elevou este gênero tão mal visto no país ao status popular. Finalmente, hoje, o documentário é assistido nas grandes telas, inclusive dos shoppings, com certa atenção e apuro dos espectadores menos inocentes.

Não se pode dizer que, após Coutinho, uma escola do gênero foi formada no Brasil. Mas a influência existe, sem dúvidas, perceptível na distância do encontro permitido através da entrevista – quase pura, em sua “procura pela realidade”.

É o caso do filme que anda em cartaz em alguns cinemas do Brasil, dirigido pela diretora estreante Ana Rieper, Vou Rifar Meu Coração. Se em uma reportagem, ao estilo Globo Repórter (no qual, aliás, Eduardo Coutinho teve sua passagem na década de 70), despeja-se atenção em entrevistas picotadas, dando um ritmo que a TV comercial impõe ao espectador mediano como sendo o credível, no documentário a proposta é de nos fazer sentar em uma conversa um pouco mais longa.

Preconceito forte

No filme citado, assistimos, mais uma vez, à cultura popular. Hoje, finalmente, expressando a vida de uma periferia excluída ao longo da história. A música denominada como “brega” pela cultura midiática hegemônica ganha o foco no documentário de Ana e o problema que afeta um gosto público se mistura ao já clássico debate sobre qual discurso é o popular realmente. As entrevistas são feitas não somente com os compositores reconhecidos de canções radiofônicas, mas com a plateia ouvinte, as pessoas comuns, retratadas pelas músicas – sendo algumas estórias contadas comoventes no conteúdo. O sotaque interiorano e nordestino é forte, assim como o impacto causado pelo sentimento manifesto de carência da tal periferia, não mais vista através do olhar tutor formatado pelas reportagens televisivas atuais. O repórter é, portanto, desnecessário no retrato de uma realidade popular, nos diz o filme.

Talvez não tanto por coincidência, o longa-metragem de Ana Rieper foi lançado pouco tempo depois do filme Canções, de Eduardo Coutinho. Através da música, um outro tipo de história do país pode ser traçado, não só pelas letras, mas pela recepção, aceitação de determinados refrões, na escuta diferenciada dos mesmos. Muito pouco, aliás, se conhece sobre as músicas populares após a era do rádio – profundamente reformulada quando a canção moderna, a bossa-nova, chega ao cenário cultural. Em outros termos, o que tinha, e tem, status de erudito ou artístico, fica distante do sofrimento, sentimento de dor, carência e expressões similares do chamado “povão”.

A metáfora poética da miséria fica a encargo das separações, das traições e mesquinharias melodramáticas que brigas de casal reforçam. As letras falam, mais do que isso, da maneira que os próprios autores, tais como Lindomar Castilho, Agnaldo Timóteo, Nelson Ned, Wando, Amado Batista – criadores de hits que chegam aos milhões de apreciadores, também deixam claro. Fica a ironia e a inversão de valores para a reflexão sobre qual a voz realmente popular que fala, e certas vezes não é escutada nem vista por um preconceito de classe e étnico muito forte reafirmado pela mídia.

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[Mauro Luciano de Araújo é professor universitário, Salvador, BA]