Parece um caos social, mas não é: na mesa da presidente Dilma Rousseff (PT), o Planejamento deve adquirir uma coloração a cada dia mais especial como forma de evitar o desperdício e promover a otimização dos recursos crescentemente mais escassos. Dessa aparente salada de problemas, só há dois caminhos: uma participação acentuada do Congresso Nacional seguida de uma gigantesca interação social.
Não se compreende o desperdício de recursos com o abandono da malha ferroviária nacional em detrimento da caríssima e insaciável malha rodoviária, uma opção equivocada, tipicamente lesa-pátria ditada pelo espírito revanchista de alguns setores da direita brasileira. O abandono do planejamento como estratégia de desenvolvimento se seguiu a uma notória aversão ao perverso consorciamento entre as ditaduras militares em ascensão no continente latino-americano e a aparente descoberta do “pensar o amanhã” como sendo o passaporte da ligação dos grupos no poder com o futuro.
Na verdade, bem antes de servir como inspiração aos “iluminados do futuro”, um estudo escrito na década de 60 pelo economista sueco Gunnar Myrdal (Teoria Econômica e regiões subdesenvolvidas) transformou-se em livro de cabeceira de alguns que, em países como o Brasil, converteram o planejamento em matéria-prima essencial, como o economista João Paulo dos Reis Veloso.
Braços e mãos
Veja como as situações estão entrelaçadas mais do que nunca no Brasil dos nossos dias, uma questão que por si só já exigiria uma reflexão mais inteirada, mais científica e menos apaixonada da nossa mídia. Com o incêndio na Favela do Moinho na manhã de 17/9, a imprensa paulista registra 60 incêndios ocorridos na capital paulista só este ano. Como em todos os locais, o setor imobiliário tem visualizado o principal nicho para seus investimentos. Por que a mídia local não investigou até agora se esses atos não estariam vinculados aos interesses da indústria imobiliária? Pelo sim pelo não, a justificativa dos bombeiros é a mesma para todos os incêndios: a longa estiagem de mais de cinco meses na região. Porém no dia 17 a polícia já identifica um dedo criminoso. Para que realidade esses incêndios têm servido?
Como São Paulo é a maior capital do país em população do Brasil e a 14ª mundial, a indústria imobiliária não vê mais para onde crescer a não ser nos espaços ocupados pela pobreza. Há estimativas não oficiais da existência de mais de 1 milhão de pessoas em submoradias, nas favelas e debaixo das pontes e viadutos. Essas pessoas não são atendidas pelas políticas públicas de educação, saúde, habitação dos governos federal e estadual e onde elas se escondem quase não chegam os braços do governo municipal.
Há uma necessidade urgente de a mídia paulista investigar e descobrir a origem de todos esses incêndios embora se saiba, de antemão, ser essa uma tarefa quase impossível devido à presença dentro desses veículos dos braços e mãos da indústria imobiliária.
Analfabetos funcionais
Esse caso coloca outra questão grave: qual a natureza da política de desenvolvimento urbano, se é que ela existe hoje no Brasil? Objetivos: organizar a cidade para seu presente e um melhor futuro, ou segregar cada vez mais a população sem renda e de baixa renda? Para um país que há menos de 60 anos possuía uma população rural ocupando mais de 60% do seu território, a inversão dessa pirâmide infelizmente não veio acompanhada de um planejamento urbano capaz de contemplar aqueles com renda abaixo da linha de pobreza. Resultado: o caos urbano total e geral. Pergunta-se: qual a contribuição da mídia na busca de soluções ao problema? Você pode indagar: a transmissão da informação não é suficiente para a população enfrentar o problema?
Quando a mídia passou a garantir maior espaço sobre questões da cidade, criando a respectiva editoria voltada para os temas pertinentes, supunha-se que o poder público cumprisse o seu papel.
Mas pouco a pouco, o próprio poder público foi se desqualificando, a ponto de daqui a alguns anos muita gente ficar espantada com a presença, nas Câmaras de vereadores, de representantes analfabetos funcionais originários de escolas de ensino fundamental com curso de apenas dois meses de duração.
Trens, o crime lesa-pátria
A lenta implantação da malha ferroviária brasileira transcorria em fogo baixo mas parecia animada com os ventos da pressa e dos êxitos do desenvolvimento do setor na Europa antes e no pós 2ª Grande Guerra mundial.
Com o golpe militar, a ditadura deu macha à ré. Abandonou toda a malha ferroviária nacional ao delegar aos estados a responsabilidade pela sua implantação sem oferecer nem a qualificação profissional nem os recursos necessários a um setor que, na Europa, desde então, é em grande monta subsidiado, tratado como prioridade como educação e saúde.
Dia 18/9, a partir das 11h, o canal fechado Sesc TV exibiu um documentário do escândalo: em várias partes do país, principalmente entre Minas e São Paulo, centenas de quilômetros de ferros destroçados e retorcidos sobre trilhos e dezenas de trabalhadores que deram suas vidas ao ferroviarismo, que era um modo de vida em que a população já se acostumava a andar sobre trilhos – claro, as viagens eram mais longas e os acidentes eram raros. Confrontados com as 22 mil mortes anuais em acidentes automobilísticos eles quase não existiam.
Transporte solidário
Os trens já eram, sim, um meio de transporte solidário no Brasil. Quando se fez a opção pela rodovia, a ganância falou mais alto: o Brasil mergulhou na maior crise de endividamento externo da sua história, passando a importar o petróleo que consumia, além do betume para a implantação de sua malha. Quem pagou a conta? Os brasileiros, através de instalação de uma impostometria que segue até hoje. Nessa época, até divulgar que o petróleo é um recurso finito era censurado.
Hoje, a malha ferroviária europeia é um exemplo para o mundo: você percorre o continente em trens cada vez mais velozes. E talvez seja o melhor exemplo de mobilidade social do planeta. O treinamento da prática do transporte solidário em São Paulo na última terça-feira, 18/9, foi uma reação um pouco tardia do setor público ao caos social decorrente do esgotamento dos transportes rodoviários sem planejamento de uso e da insuficiência dos trens urbanos.
Os benefícios do transporte solidário, as pessoas dando caronas, só poderão ser melhor avaliados se a prática for adotada nacionalmente. Contudo, se não for removido um dos seus maiores obstáculos, a ação dos assaltantes e bandidos, essa tentativa será coroada com um tremendo fracasso, justamente agora em que a população sente na pele o quanto a falta de planejamento urbano lhe é prejudicial.
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[Reinaldo Cabral é jornalista e escritor]