O leitor certamente conhece a frase “O bom filho a casa torna”. Vou logo dizendo que esse “a” não tem mesmo acento indicador de crase, mas isso é conversa que fica para outro dia. Pois bem. Muita gente entende mal uma conhecida sentença, que é “semelhante” à primeira e vem da parábola do filho pródigo. Sabe qual é, não? É só trocar “bom” por “pródigo”. Lá vai: “O filho pródigo a casa torna” (também sem acento no “a”). Muita gente acha que as frases se equivalem, como se “pródigo” fosse sinônimo de “bom”, “magnânimo” etc., ou seja, como se o filho voltasse para casa porque não esquece os seus, porque lhes é grato e por aí vai. O filho pródigo volta para casa justamente porque é pródigo, ou seja, porque é esbanjador, gastador, dissipador. Leia a parábola, se for o caso.
O exemplo de leitura torta que acabamos de ver decorre do desconhecimento do real significado de uma palavra. Passemos para outro exemplo de leitura torta, que começa com o seguinte raciocínio: “Toda vaca voa; Mimosa voa, portanto Mimosa é…” Quem concluiu o raciocínio dizendo “portanto Mimosa é uma vaca” errou. E errou porque leu mal, porque pensou mal. Dizer que toda vaca voa não equivale a dizer que tudo que voa é vaca. Como vimos, esse caso de leitura torta decorre da deficiência no raciocínio lógico.
Agora vejamos um terceiro caso de leitura torta – para mim, o pior de todos. Refiro-me ao tipo de leitura de que é exemplo aquela que muitos fizeram do lúcido texto escrito por Maria Rita Kehl e publicado na “Ilustríssima” do último domingo (16/9). Eu sabia que não deveria ler os comentários postados na versão eletrônica do artigo. Um dos meus filhos bem que me advertiu (“Pai, não estrague o seu domingo”). Mas o burro aqui leu. E o que o burro viu? Caminhões de exemplos de leitura torta, raivosa, fruto do pior dos males, da pior das doenças: a brutalidade, a grosseria, o analfabetismo funcional.
Corados de vergonha
Gente que não consegue diferenciar uma reportagem de um texto analítico se pôs a dizer grosserias como “Essa repórter deveria ir para a cozinha” ou “Por que essa jornalista não leva um bandido para a casa dela?” Santo Deus!
A respeitada psicanalista (psicanalista, não repórter – estava escrito nos créditos do artigo, santo Deus!) Maria Rita Kehl, cujo nome atravessa as nossas fronteiras, escreveu um artigo (artigo, não reportagem!) em que, essencialmente, defende a civilização e, no estado de direito, civilização significa agir de acordo com a lei, seja quem for aquele que age (civil ou militar). Para muita gente, no entanto, basta que alguém questione uma ação da polícia, umazinha que seja, para que se configure a defesa do banditismo (!!!), das ações dos bandidos (!!!) etc. Para essa gente, a polícia tem e sempre teve razão, em qualquer situação, fato, circunstância, tempo, período, era etc., o que configura um estado de coisas que tem um nome bem claro: nazifascismo (ou atraso, barbárie etc., etc., etc.).
Sugiro a essa gente que ouça (e entenda) “Nome aos Bois”, dos Titãs. Sugiro ainda que leia, leia muito, mas leia o que desarma o espírito, eleva e enleva a alma. Se possível, que inclua na leitura um pouco de filosofia, de textos que aprimorem o pensamento. Para os que gostam de enxergar o que não há nos textos e/ou para os que gostam de atacar o que não foi dito ou ainda para os que atacam a pessoa, e não as ideias (realmente) proferidas, sugiro a leitura de A Dialética Erística, do filósofo Schopenhauer. Quem sabe a compreensão dessa obra fizesse muita gente ficar corada de vergonha por perpetrar tanta bobagem. É isso.
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[Pasquale Cipro Neto é professor e colunista da Folha de S.Paulo]