“Deante da nossa actual situação política, a única coisa que o carioca toma a sério, quando pode, é a sua média, com pão e margarina nacional”. A frase foi publicada no dia 19 de abril de 1934, com ortografia própria da época, no alto da capa de A Manha, “um jornal de ataque de risos” fundado por Apparício Torelly, o Apporelly, ou o Barão de Itararé, e hoje peça rara da Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Irreverente ainda nos dias atuais, o tabloide de crítica e humor, que circulou até 1952, é uma das obras da hemeroteca (coleção de jornais e revistas) da FBN agora ao alcance de todos na web, a poucos cliques. Quem navega pelo portal hemerotecadigital.bn.br, na rede desde julho, já encontra quase 700 títulos de periódicos lançados a partir de 1808 – ano do primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense, editado em Londres – que totalizam cerca de 6 milhões de páginas.
Até o início de 2013, a Hemeroteca Digital Brasileira chegará a seis mil títulos, que não só contam a história da imprensa, do Brasil e do mundo, sob diferentes ângulos e linhas editoriais, como revelam curiosidades do passado. Ainda na edição de 19 de abril de 1934, o Barão de Itararé, pioneiro da sátira política no Brasil, não perdoou o aniversário do presidente da República, Getúlio Vargas, chamado por ele de “G. G. Tulio Vargas”: presenteou o presidente, cujo governo o perseguiu e o mandou prender, com uma foto deformada e a seguinte manchete naquele dia: “Uma data íntima, que é uma data nacional”.
Costumes e mudanças no Rio da virada do século XIX para o XX são temas também facilmente explorados com a nova ferramenta. Para quem quiser saber mais sobre o lado picante da cidade no final do século XIX, O Rio-Nú, periódico masculino de 1898 precursor do gênero pornográfico nas bancas, que fez grande sucesso na sua época, já integra a base de documentos do portal.
Antes disso, em 1852, era lançado O Jornal das Senhoras, primeira publicação editada por mulheres, que também faz parte do projeto. “Ora pois, uma senhora à testa da redação de um jornal! Que bicho de sete cabeças será?”, diz um trecho do bem-humorado editorial de apresentação. Quem foi criança nas décadas de 40 e 50 pode matar saudades da revista em quadrinhos O Tico-Tico, a primeira do tipo no país e que circulou por 50 anos a partir de 1905.
– Começamos com a digitalização de grandes coleções, como o Correio da Manhã. Agora estamos atacando os periódicos pequenos que duraram um ano, dois anos – explica a coordenadora da Biblioteca Nacional Digital (BNDigital), Angela Monteiro, acrescentando que a meta é colocar no portal, acessível por celulares e tablets, dez milhões de páginas até o começo de 2013. – Serão dez milhões de páginas que as pessoas poderão carregar no bolso.
54 mil títulos
A coordenadora afirma que o número supera o volume da hemeroteca virtual da Biblioteca do Congresso Americano, com suas quatro milhões de páginas. Entrarão na BNDigital os periódicos raros, com marcas já extintas, e os que derem autorização à FBN. Estão ainda nos planos da biblioteca disponibilizar as fotonovelas e criar uma ferramenta que facilite a busca por palavras que, no passado, tinham ortografia diferente, como “pharmácia” e “commércio”.
O endereço da hemeroteca contabiliza, de acordo com José Lavaquial, sócio da DocPro, um milhão e 600 mil páginas pesquisadas num mês, e 60 mil acessos ao dia. O periódico campeão de consultas hoje é a Revista do Rádio, com suas fofocas da época.
A biblioteca guarda hoje 54.278 títulos na sua hemeroteca, o que daria 17 quilômetros de estantes, O processo de digitalização começou em 2010 e custará até o início de 2013 R$ 6 milhões à Financiadora de Estudos e Projetos.
***
[Ludmilla de Lima, de O Globo]