Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A história como terreno de disputas

Uma escritora da infância deu a ideia de como seria bom recortar de um livro apenas as coisas bonitas, o que valesse a pena ser lido. Para mim seria um grande exercício e antes da era da internet uma grande picotação à base da boa tesoura, mas na ordem do texto digital ficou bem mais fácil. Acontece que em alguns segmentos, como a grande mídia, escolher coisas bonitas, boas e justas para recortar ficou difícil. Então, sigo minha natureza pessimista de notar mais o que é feio, ridículo e desarrazoado. Neste caso, sobre um assunto que afeta diretamente a minha corporação, a legalização da profissão de historiador.

Em 07/11/2012, o presidente da ANPUH (Associação nacional de História), Benito Schmidt, divulgou uma nota afirmando que “nosso projeto de regulamentação da profissão de historiador foi aprovado no plenário do Senado Federal”. Curiosamente. eis o desarrazoado. Na matéria “Historiador? Só com diploma”, o jornalista Fernando Rodrigues dá uma grande demonstração de má-fé (é preferível crer que seja isso ao invés de ignorância) ao escrever que “[…] se vier a ser aprovada pela Câmara e depois sancionada pela presidente da República, a nova lei impedirá que pessoas sem diploma de história possam dar aulas dessa disciplina. […] A proposta é de um maniqueísmo atroz. Ignora que médicos, sociólogos, economistas, engenheiros, juristas, jornalistas ou cidadãos sem diploma possam acumular conhecimentos históricos sobre suas áreas de atuação. Terão todos de guardar para si o que aprenderem”.

Curiosamente, o jornalista se nega a entender que o projeto, cujo trecho é citado na sua própria matéria, afirma que “o exercício da profissão de historiador, em todo o território nacional, é privativo dos portadores de diploma de curso superior em história, expedido por instituição regular de ensino”. O “exercício da profissão”, diz o texto, e isso não impede que outros profissionais ou intelectuais acumulem conhecimentos históricos ou escreveram livros sobre história como alguns jornalistas o fazem, citando como exemplo Eduardo Bueno, Elio Gaspari e Laurentino Gomes.

Algo equivalente

Nessa mesma direção vai a resposta do presidente da ANPUH publicada no site da instituição em 14/11/2012.

Nós, historiadores profissionais, sabemos que uma das regras básicas do nosso ofício é a elaboração de um discurso de prova, assentado na pesquisa e na crítica dos vestígios do passado, os documentos. Fernando Rodrigues, por não ter essa formação, talvez desconheça essa regra tão elementar e, por isso, não se deu ao trabalho de ler com atenção o documento que deveria balizar a sua análise. […] Em nenhum momento este projeto veda que pessoas com outras formações, ou sem formação alguma, escrevam sobre o passado e elaborem narrativas históricas. Apenas estabelece que as instituições onde se realiza o ensino e a pesquisa de História contem com historiadores profissionais em seus quadros, por considerar que, ao longo de sua formação, eles desenvolvem habilidades específicas como a crítica documental e historiográfica e a aquisição de conhecimentos teóricos, metodológicos e técnicos imprescindíveis à investigação científica do passado. Da mesma maneira, a regulamentação pode evitar que continuem a se verificar, nos estabelecimentos de diversos níveis de ensino, situações como a de o professor de História ser obrigado a lecionar Geografia, Sociologia, Educação Artística, entre outras disciplinas, sem ter formação específica para isso (e vice-versa).

Vai no mesmo viés de crítica a opinião do leitor “Historiador comenta artigo sobre lei que regula sua profissão” publicada em 12/11/2012:

“[…] você confunde o acúmulo de conhecimento pura e simplesmente como um conhecimento historiográfico. Há que se diferenciar o que seja memória daquilo a que chamamos historiografia. Acúmulo, todos temos: lemos biografias, lemos jornais, vivenciamos períodos conturbados como guerras, conflitos sociais e outros tantos. Mas isso não nos dá a técnica de pesquisa -aquele conjunto de conhecimentos a respeito do saber inquirir documentos, separá-los, reorganizá-los e criticá-los”.

Difícil acreditar que o jornalista Fernando Rodrigues tenha feito uma leitura ligeira do texto do projeto ou que não tenha traquejo o suficiente com a língua portuguesa, o que o teria impedido de compreender o teor do documento. Seus pares autores de biografias, ou reportagens cujo conteúdo tenham por base fontes históricas de forma alguma seriam impedidos de continuar publicando seus livros, pois seria um absurdo se o projeto que tenta regulamentar a profissão de historiador tivesse tal intenção. Apenas objetiva que algumas funções da área, como lecionar, por exemplo, exijam um profissional habilitado em história. Lendo o texto de Fernando Rodrigues lembramos que o jornalismo também precisa de algo equivalente e com urgência.

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[José Alexandre é professor de História, Ponta Grossa, PR]