O início de dezembro é tradicionalmente a época em que notícias sobre o festival de cinema de Berlim começam a ser lançadas na imprensa. Primeiramente, notícias soltas sobre quem será o presidente do júri internacional; depois, uma novidade aqui e ali do evento que a cada ano se torna mais abrangente. Mas o pontapé midiático é de fato o anúncio do cartaz da próxima edição. Em 2013, o urso polar foi o motivo escolhido pela Boros, agência gráfica de prestígio, há anos responsável pela roupagem gráfica do festival.
A divulgação vem sempre acompanhada de uma nota oficial, pro forma, assinada por Dieter Kosslick, diretor, mente e coração do festival: “O nosso pôster da edição 2013 da Berlinale dará um acento colorido ao cenário de inverno da cidade de Berlim, além de esquentar o clima para o festival. O urso de Berlim não tem tempo para a hibernação”.
Kosslick é uma mistura de mestre de cerimônias e um Jerry Lewis alemão, hiperativo e desajeitado, ao mesmo tempo em que é a garantia para a imensa repercussão que o festival goza na mídia. Ao longo de mais de uma década no cargo, ele conseguiu como nenhum outro acoplar a imagem do festival à sua pessoa – ou seja, sem Kosslick não tem Berlinale. Com contrato a vigorar até 2013, o ministro federal da cultura o convenceu a prolongar o acordo até 2016, para abafar o debate de semanas na mídia, que dia após dia questionava: “Kosslick vai ou fica?”, “O que vem depois de Kosslick?”.
Mesmo quando se sabe que o show deve e irá continuar, mesmo quando esse caótico adorável deixar o cargo, a paúra do fim da era Kosslick foi motivo para a reação rápida do ministro.
A todo vapor
Enquanto consumidores frenéticos enchiam os shoppings do novo centro de Berlim, Potsdamer Platz, no período pré-natalino, a chefia da imprensa do festival não para de trabalhar. O cartaz para a edição de 2013 é o mas fraquinho dos últimos anos. Em 2011, por exemplo, o “B” suscitando ao mesmo tempo Berlim e Berlinale com uma tipologia comum nos anos 1920 foi um dos últimos highlights da Boros. Em 2010 a agência se superou, imprimindo o nome de todos os filmes exibidos na competição na longa história de 60 anos do festival, instigando cinéfilos ao contato físico imediato com o cartaz à procura do filme predileto.
Depois da divulgação do urso à opinião pública, a maquinaria midiática rola sem parar até os 10 dias do glacial mês de fevereiro. Com disse um amigo, “não importa se Hans Donner concebe o símbolo da Globo virando para a direita ou para a esquerda. O que vale mesmo é o que o logotipo representa”. Essa afirmação vale também para Berlim: não importa a cara ou cor do urso. Quando os ursos estão espalhados pelas ruas da cidade, é porque a Berlinale chegou.
Percepção da mídia brasileira
O que grande parte da imprensa e blogs semiprofissionais ainda não entendem é que cobrir 10 dias do festival é infinitamente pouco para dar a real dimensão cultural desse evento na Alemanha. Além do foco em filmes que, na sequência, estrearão em circuito nacional, algumas anedotas de estrelas e estrelinhas completam uma cobertura de cunho superficial e enfadonho.
Por essa falta de diferenciação, vê-se frequentemente notícias do tipo “Filme X será exibido em Berlim”, mesmo que essa exibição seja nas salas do mercado europeu para potenciais compradores ou em alguma das inúmeras mostras paralelas. “Nosso filme estará em Berlim” causa impacto.
Imprensa meticulosa
Toda a estratégia do setor de imprensa do festival, que conta há anos com uma equipe-núcleo minúscula, é meticulosamente planejada. Qualquer decisão é decidido pela chefe, no cargo há mais de uma década. Não há delegação na hora de decidir e cada setor tem independência intocável.
Os irmãos ricos
Ao contrário de Cannes e Veneza, Berlim é um festival altamente popular. Na comparação dos três festivais mais relevantes em termos de prestígio e mercado no velho continente, Berlim fica em terceiro lugar nas cifras, mas é um verdadeiro paraíso quando se trata de novas tendências, novas formas de cinematografia e alternativas para o mercado cinematográfico.
E engana-se quem pensa que em Berlim o dinheiro e o prestígio dos patrocinadores é modesto. A diferença é que em Berlim tudo é feito sob o manto do Understatement.
O cinema brasileiro e a sua falta
Nem toda a voracidade que existe na Alemanha por tudo o que acontece no Brasil fez com que os filmes exibidos no festival espelhem essa tendência. No contexto de forte crise econômica e de confiança no projeto da UE, o Brasil é vislumbrado da perspectiva européia como “O Eldorado”.
Andreas Wunn, correspondente na América do Sul da TV aberta ZDF, baseado no Rio de Janeiro, fez há poucos meses uma reportagem sobre portugueses, em sua maioria profissionais liberais que, fugindo da crise, encontraram em solo carioca possibilidades de desenvolvimento profissional. Isso mostra bem a mudança de paradigma: anos atrás, brasileiros eram barrados no aeroporto de Lisboa e, hoje, portugueses veem na antiga colônia uma chance profissional irrealizável no velho continente.
O Brasil mudou, mas essa mudança ainda não chegou à tela do festival de Berlim. A falta do cinema brasileiro na mostra competição pode também ter outros motivos: curadores que temem arriscar na nova linguagem cinematográfica autoral que existe no Brasil, principalmente no cinema de Pernambuco, ou que se limitam a visitar festivais do eixo Rio-São Paulo. A outra pilastra que pode ser empecilho são filmes que,
na onda da redescoberta da própria história e com direito a subsídio estatal, fazem de produções como Gonzaga de pai pra filho e Dois filhos de Francisco grandes sucessos de bilheteria, mas que internacionalmente não funcionam. Assim como De pernas pro ar 2, ansiosamente aguardado por cinéfilos locais, seria incompatível com o cunho político que tem o festival de Berlim.
Respaldo governamental
Com apoio do governo alemão, principalmente na pessoa do ministro da Cultura Bernd Neumann, Dieter Kosslick pode ousar em chamar para membros do júri cineastas ameaçados em seus países ou exilados. Ou, como em 2013, convidar o diretor chinês Wong Kar Wai para a presidência do júri internacional.
Mais do que 10 dias de filmes bons, ruins e/ou polêmicos, o festival de Berlim é um ato político e solo fértil para cinéfilos de todas as partes do planeta, mesmo que pergunta obrigatória feita na coletiva de imprensa – “Por que não há filme brasileiro esse ano na competição” – fique, mais uma vez, sem resposta.
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[Fátima Lacerda é jornalista freelance, formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988]