Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A última entrevista

Se estivesse vivo, Leonel Brizola completaria 91 anos na terça-feira, 22/1/2013. O então presidente nacional do PDT e ex-governador do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul morreu no dia 21 de junho de 2004, aos 82 anos, vítima de uma infecção pulmonar. Em março daquele ano, o destino me reservou a sorte de ser o último jornalista a fazer uma grande entrevista para televisão com ele.

Depois de três dias de chá de espera e após muita insistência ao telefone para que ele não cancelasse uma gravação pré-agendada havia semanas, ele me recebeu com a equipe da TV Senado na portaria do prédio onde morava, em Copacabana. Fomos para lá com as malas já prontas para, em seguida, pegar o avião no aeroporto Santos Dumont. Aquele era o nosso último dia no Rio de Janeiro. Já havíamos remarcado a passagem diversas vezes. Na verdade, o deadline dado pela TV Senado havia vencido na véspera. Mas decidimos ficar mais aquele dia por uma questão de compromisso com o material a ser produzido.

O depoimento de Brizola era fundamental para o que pretendíamos fazer. Já nem havia mais diárias, a locação do carro havia estourado, mas a equipe decidiu pagar a última noite de hotel com dinheiro do próprio bolso.

Incômodos superados

Brizola não me deixou subir ao apartamento. Ele desceu no elevador e perguntou o que queríamos. A entrevista deveria ter um tratamento estético, plástico, diferenciado, com uma luz bonita, um fundo que lembrasse a temática que tratávamos. Mas o repórter-cinematográfico Marcos Feijó, acompanhado do auxiliar José Zenildo, não teve a mínima chance de produzir algo diferenciado naquele local: o saguão de entrada do prédio de Brizola, na Avenida Atlântica.

A porta externa da portaria era de vidro blindex e jogava uma luz azulada no minúsculo espaço que tínhamos com Brizola. Para piorar, ao fundo, do lado direito do ex-governador, havia a porta do elevador que não parava de abrir e fechar. Mas era gravar daquele jeito ou não gravar nada.

Como não é possível falar de Brasil do século 20 sem incluir Leonel de Moura Brizola, e não sabíamos se haveria outra oportunidade, a saída era mandar ver ali mesmo. O destino nos mostrou que estávamos certos.

E foi assim: ele, sentado na cadeira do porteiro do prédio, e eu, no case que embala a câmera, conversamos por horas. Ressabiado pelo tratamento que historicamente recebeu da mídia nacional, ele se mostrou, no início, bem desconfiado. Lembro-me que disse: “Olha, guri, vou lhe dar uma chance. Pode perguntar o que você quiser, sem medo. Eu não me incomodo”.

A pauta era colher depoimentos para dois documentários da série “Senado Documento”, da TV Senado: ”1964 – 40 anos depois”,dirigido por mim e Cesar Mendes, e ”Getúlio do Brasil”,também comandado por mim e Deraldo Goulart. O golpe militar completaria dali a poucos dias 40 anos e, agosto daquele ano, marcaria o 50º aniversário do suicídio de Getúlio Vargas.

Gravamos com Brizola num domingo de sol, com a praia de Copacabana explodindo de calor a poucos metros. A entrevista foi interrompida por um vizinho surfista que desceu do elevador com a sua prancha, por senhoras que iam caminhar com seus cachorrinhos e até pelo caminhão de gás, que no Rio de Janeiro circula com umas musiquetas chatas e estridentes. Mas eu não poderia perder aquela gravação e todos esses incômodos foram ignorados. O pensamento de Brizola era bem mais forte do que qualquer perda de qualidade sonora ou estética.

A conversa começou com Getúlio Vargas, passou pela Rede da Legalidade, Jango, regime militar e terminou com Lula, que naquele momento estava na metade do seu primeiro mandato.

Atentado da Toneleros

Com a morte de Brizola, uns 90 dias depois, um terceiro documentário, por mim editado, veio à tona. Foi realizado a toque de caixa. Peguei o material bruto, entrei numa ilha de edição e fiquei lá por três dias – manhã, tarde e noite. Brizola morreu na noite de uma segunda-feira, a notícia veio a público na terça. No sábado, ”Leonel Brizola, um legalista” ia ao ar para todo o Brasil graças a um “esforço de reportagem”, como se diz no jargão profissional.

O vídeo é praticamente, a íntegra da entrevista com Brizola, que não mediu a língua: falou sobre a Rede da Legalidade, o movimento de manutenção da ordem jurídica que previa garantir a posse de João Goulart após a renúncia do presidente Jânio Quadros. Jânio também é lembrado pelo ex-governador do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul. Do regime militar à anistia, Brizola falou de falou de tudo.

Conversar com Brizola foi uma aula de política e de história do Brasil. Uma aula de como as pessoas que acreditam num ideal – e lutam para que ele se materialize – podem contribuir para transformar a realidade de uma nação, de um povo.

O especial ”Leonel Brizola, um legalista” tem perto de uma hora e está disponível na página da TV Senado, em dois blocos. Clique aqui para acessar o primeiro bloco. A íntegra desse programa foi transcrita pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-americanos (Cebela) e editado no periódico científico Comunicação & Política.

Os documentários “Getúlio do Brasil” e “1964 = 40 anos depois” estão na página da TV Senadoe podem ser copiados ou visualizados na internet. Eles fazem parte da série “Senado Documento” e são bem longos, quase três horas. Originalmente, estão em três blocos, mas, na internet, ”1964 = 40 anos depois” está dividido em nove blocos e o primeiro bloco pode ser acessado aqui. Depois, é só ir abrindo os demais.

“Getúlio do Brasil” faz um reexame dos momentos que antecederam o suicídio de Getúlio Vargas e mergulha nos bastidores do atentado de Rua Toneleros, contra o jornalista e político Carlos Lacerda, 19 dias antes da morte do presidente. O documentário tem locações em Porto Alegre e São Borja (RS), em Brasília e no Rio de Janeiro, com gravações no Palácio do Catete. Na internet, ele está dividido em cinco blocos e pode ser acessado por meio deste enlace.

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[Chico Sant’Anna é jornalista]