É o marco da infância de muitos de nós, jornalistas: aquele garoto de calças de golfe, camisa polo e, frequentemente, um sobretudo, acompanhado do seu cachorro branco, dos polos aos desertos, que roda o planeta resolvendo crimes e conhecendo culturas diversas. O que primeiramente era um passatempo, com o passar da vida acadêmica virou um sonho: o jornalista investigativo, quase um gonzo, que dá os maiores furos em governos mundo afora. Para muitos, o personagem octogenário de Hergé (Georges Prosper Remi, 1907-1983) é quase um sonho.
Mas se até hoje assistimos – e lemos – sem entender o principal crime que o personagem principal faz, além da sua principal lição a nós, jornalistas, talvez esteja na hora de revermos as teorias éticas de nossa área.
Para entender melhor esse complexo, vamos usar como exemplo o Tintim brasileiro: Celso Russomanno, repórter do extinto Aqui Agora, que usou a fórmula “prestação de serviço” para defender a população de empresas que não seguiam as regras de comércio. Algumas vezes eram apenas mal-entendidos, outras grandes fraudes, mas todas se tornavam manchetes históricas sob o comando da produção do programa. O sucesso foi tanto que hoje, como repórter da Record paulista, quase abocanhou uma vaga como prefeito de São Paulo (sendo impedido por pequenos detalhes, como a falta de um plano de governo, mas esse não é o assunto aqui).
Profissionais comuns
Celso, como um paladino dos fracos e oprimidos, dá a cara a bater contra donos de concessionárias desalmados, vendedores de lojas de móveis, entre outros tipos de comerciantes. Mas, tal como o herói belga, Russomanno não toma conhecimento do que pode se entender como público ou privado: incansáveis vezes ele invadiu escritórios minúsculos, com câmera, produtor – e a figura quase decorativa do queixoso – exigindo explicações sobre isso ou aquilo, questionando, com um ar até cômico, como não saberiam deste ou aquele artigo do seu bebê, o Código de Defesa do Consumidor. Logo após a resolução do problema, um pequeno discurso fechava grande parte das matérias.
Com Tintim é a mesma coisa: entrando em governos, em navios petroleiros alheios, sem ser convidado, e assim descobrindo as maiores tramoias, muito antes da polícia em si (representada ali pelos atrapalhados Dupond e Dupont). Furos de reportagem sim são frutos da petulância de um repórter, de uma ligação a mais, daquela resposta escorregadia em que o entrevistado reluta ou deixa escapar. Mas achar que o jornalista tem seu espaço na galeria dos super heróis é um erro dos mais hediondos possíveis. Somos profissionais comuns, dentro de um espectro médio de renda, tal como um analista de sistema, um contador ou um bancário. Ter uma vida um pouco mais movimentada ou com mais informações não nos torna superiores a nada.
Amensagem de Tintim
O jovem belga não tinha problemas em assumir a culpa, assumindo às vezes sua parte em diversos atos – parece vir daí a aura inocente e infantil do personagem. Isso o tornava um cidadão comum, que buscava saber a verdade, que excedia os limites entre público e privado a favor de um interesse alheio, mas que sabia dos riscos e das suas responsabilidades. Os semelhantes em carne e osso que vemos hoje dominando a imprensa brasileira talvez façam tudo, menos assumir a culpa por seus erros.
Sob a pretensa égide da “carteirada”, que vive batendo em portas e pulsos telefônicos país afora, os jornalistas buscam a informação a qualquer custo, momentaneamente suspendendo a utilidade de coisas como um código de ética, por exemplo. Como que quase sempre defendendo algum interesse superior de dentro de sua empresa, repórteres passam por barreiras, câmeras dão close em mortos, editores cortam aspas fora de contexto. Com o status de jornalista e a desculpa da “prestação de serviço”, barbaridades como estas frequentemente acontecem. Bons exemplos são o caso da Escola Base, em 1994, a recente tragédia de Santa Maria (onde pouco espaço foi dado para o luto das vítimas, aliado com o excesso de informação) e, novamente, nosso herói Celso.
As faculdades, grande parte delas permeadas de bons docentes, não ensinam tais ações. Pelo contrário, condenam e insistem para que tais ações sejam riscadas do mapa. Mesmo assim, no cenário que existe vemos que o jornalismo brasileiro não avançou muito desde seus anos de província – uma análise mais pessimista não hesitaria em dizer que piorou. Nesse momento é bom entendermos a mensagem que Tintim pode passar. Ou então, quem sabe metaforicamente, acabemos como o jovem: com alguém nos acertando repetidamente com um taco na cabeça.
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[Guilherme Mendes é estagiário em Jornalismo, Carapicuíba, SP]