No domingo em que o Brasil acordou chocado com o incêndio que matou 239 pessoas numa boate em Santa Maria, a charge que o jornal O Globo publicaria na primeira página no dia seguinte já estava pronta. Como de hábito, Chico Caruso entregara na sexta-feira seu trabalho, um desenho sobre a polêmica provocada pela decisão do governador do Rio, Sérgio Cabral, de mandar demolir o Museu do Índio.
Caruso estava em São Paulo quando soube das mortes em Santa Maria. Interrompeu o descanso do fim de semana, pegou um avião para o Rio e foi direto para a redação do jornal. Desenhou um grupo de pessoas presas numa jaula pegando fogo, com uma coluna de fumaça negra em cima e a presidente Dilma Rousseff observando a cena com as mãos na cabeça. A legenda: “Santa Maria!” Nos dias seguintes, o chargista foi bombardeado por críticas nas redes sociais. Muitas pessoas o consideraram insensível com as vítimas da tragédia. “A jaula era para mostrar a incompetência da boate em tornar disponível alternativas de fuga”, explica Chico. “A Dilma estava lá como autoridade maior da República. Mas o pessoal achou que a charge era uma crítica ao governo.”
Não foi a primeira vez que um desenho de Chico Caruso provocou controvérsia e certamente não será a última. Um dos chargistas mais conhecidos do país, é o único que tem seu trabalho publicado diariamente na primeira página de um grande jornal. Suas charges tratam dos assuntos mais quentes do dia, mas a política sempre foi seu prato predileto. De João Figueiredo, o último presidente da ditadura militar, a Dilma Rousseff, ninguém escapa de seu lápis afiado.
O primeiro vazio
Chico Caruso, que completou 63 anos em dezembro, veste uma camisa xadrez. No bolso, traz seus óculos e uma caneta. Na mão, um presente para a repórter: o livro Pablo Mon Amour! (Funarte, 1986), uma biografia em caricatura de sua autoria, sobre o pintor Pablo Picasso. Estamos no Anna, restaurante italiano no bairro carioca de Ipanema escolhido por Caruso para este “À Mesa com o Valor”.
O primeiro andar tem praticamente todas as mesas ocupadas nesta noite quente de quinta-feira. O salão do piso superior é ocupado apenas por nós. Nas paredes de tijolo à vista, gravuras italianas, pratos pintados e espelho rococó. Quando Chico sobe o último degrau, Marcelo, o garçom, o recebe com as mãos para trás, sem demonstrar que já havia anunciado sua chegada.
Enquanto folheamos o livro, Chico conta que seu avô Francisco – o vô Paco – assim como o artista espanhol, eram de Málaga. “Foi ele quem ensinou eu e meu irmão a desenhar.” Seu irmão é o gêmeo univitelino Paulo Caruso – também chargista, que, atualmente, publica seu trabalho na revista Época e desenha no programa Roda Viva, da Rede Cultura. Paulo nasceu primeiro. Os dois estavam com as pernas enganchadas, Paulo tentava sair e Chico o puxava para dentro. Tiveram que arrancá-lo a fórceps. “Foi aí que senti meu primeiro vazio existencial, a parede do útero tombou sobre mim e eu ali sozinho naquela imensidão”, afirma, em tom dramático, com o braço sobre a testa.
“Aprendi com meu avô”
Chico tem emoldurada na parede de sua casa uma poesia que Millôr Fernandes dedicou aos irmãos Caruso: “(…) Duplo com a mesma extensão/ Cópia, fax, xerox/ A vida em repetição”.
“Somos uma aberração da natureza”, o chargista diz, rindo. “Eu gostaria de ter um irmão gêmeo idêntico, mas nasceu o Paulo Caruso, que é outra pessoa.” E passa a listar as diferenças entre os dois. Paulo desenha histórias em quadrinhos com cenários, enquanto Chico é mais seco e sintético. Paulo é músico, toca piano e violão, Chico canta. Paulo é dois centímetros mais baixo e 20 quilos mais gordo. “O Paulo sempre foi mais prolixo. Se você pegar um desenho da gente de criança vai ver que ele já desenhava 15 índios, quatro caubóis, os soldados, os cavalos e todo o cenário. Eu desenhava só o bandido e o mocinho. Meu irmão gosta de desenhar, eu não, eu gosto é de ter a ideia, de conseguir a síntese do fato político com humor.” E, com um sorriso diabolicamente divertido, Chico conta que o irmão sofreu um bocado em suas mãos. Quando ganhavam carrinho de plástico, ele destruía o seu em segundos. Resolver a questão era fácil: bastava roubar o brinquedo intacto do irmão. Paulo ganhava outro para repor e mal começava a imitar o som do motor, “vrum, vrum”, Chico arrancava-lhe novamente o carrinho com mordidas e safanões.
Marcelo aparece com duas cestas de pão fresco – “eles assam de 10 em 10 minutos”, anuncia. Sai fumaça das focaccie e grissini – aqueles palitos crocantes que foram colocados bem na nossa frente. As mulheres da família, conta Chico com um pedaço de pão na mão, acreditavam que, quando nascem gêmeos univitelinos, uma das crianças morre. A fim de evitar a sina, a mãe trancava os moleques em casa sob a tutela do avô Paco. “Ele era sensacional” – faz uma pausa antes de repetir a palavra que usará inúmeras vezes durante o jantar. “Sensacional. Nunca fiz aulas, tudo o que sei de desenho aprendi com meu avô.”
“Não risquem fósforos”
Já o pai “era um cara muito chato, neurastênico, agressivo”. “Eu achava que ele era o Hitler que tinha voltado e ninguém sabia. Ele fazia coisas terríveis.” Quando tinham cinco anos, Paulo, o pai, encasquetou que faria Paulo, o filho, engolir o bife na marra, pois o moleque enrolava muito para comer. “No fim ele deu um tapa no meu irmão, meu irmão vomitou, meu pai jogou o prato na parede e quebrou tudo. Esse era ‘mi papá’.”
Paulo pai era bom de copo e bebia até dirigindo. Quando a família foi de fusca para a inauguração de Brasília, o pai levou uma geladeirinha térmica apinhada de vodca e foi entornando as garrafas ao longo da viagem. Como disse o analista de Chico, “você escapou de um Titanic”. Já Izabella, filha do cartunista, não teve a mesma sorte. Viajava com uma amiga para passar o ano-novo em Búzios quando uma picape em alta velocidade, dirigida por “um cara drogado”, bateu de frente no carro em que a menina estava. Izabella tinha 10 anos e morreu na hora. Faz uma pausa, dá um gole de água e volta a falar. Seu pai tinha problema de coração e os médicos recomendaram que abandonasse a bebida, conselho ignorado solenemente. Chico foi até sua casa convencê-lo a parar de beber, mas foi o pai quem o convenceu a encher a cara com ele. “Tomamos uma garrafa de uísque e pela primeira vez na vida meu pai me deu um beijo e um abraço.”
Quando escreveu a peça O Amigo da Onça, Chico inseriu no texto uma cena que viveu com o pai. “Era assim: ‘A vida começa bem e acaba mal. Mas toma uma, você vai ver.’ Meu pai dizia: ‘Você acorda com uma dor aqui, outra ali, mas toma uma que o mundo fica mais bonito’.” A peça em questão, que foi dirigida por Paulo Betti em 1988, conta a história de Péricles de Andrade Brandão – cartunista e também alcoólatra – e de seu famoso personagem, o Amigo da Onça, sujeito que se divertia com a desgraça alheia. Péricles se suicidou no réveillon de 1961. Abriu o gás de seu apartamento e colocou na porta sua última piada: “Não risquem fósforos”. Chico mostrou seu texto para o ator Walmor Chagas: “Pô, cara, não se começa uma peça com um suicídio”, comentou o ator. “E o Walmor se matou no fim, que coisa, eu o conhecia”, lamenta, lembrando-se do artista que morreu há poucas semanas.
“Uma casa minha não ficaria pronta nunca”
Marcelo aparece para anotar os pedidos. Aceitamos a dica de Chico e vamos todos de mezzelune di agnello – meia-luas de massa verde de cordeiro ao alecrim. Para acompanhar, uma garrafa de vinho tinto Marques Casa Concha. Assim que o garçom se afasta, Chico conta como começou a fazer charges para jornal. O irmão de um de seus colegas de escola era chefe de redação do Jornal da Tarde. Quando viu o talento do garoto de 18 anos para fazer troça com traços, o convidou para trabalhar. A carga horária era de apenas duas horas, cumpridas antes que o sinal da escola anunciasse o início das aulas. Às 4h30 o carro do jornal ia buscá-lo em casa. Chico, vestindo uniforme do colégio, fazia uma média de dez desenhos diários de temas variados, como futebol, horóscopo e política. Quando foi baixado o Ato Institucional nº 5, o AI-5, as charges políticas foram cortadas. Chico foi incumbido de ilustrar crônicas.
O lugar que encontrou para continuar a criar com liberdade foi a revista Balão, que passou a editar assim que entrou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU). A turma que fazia o fanzine incluía os cartunistas Laerte, Luiz Gê e o irmão, Paulo Caruso. A Balão, hoje uma raridade, foi criada nos anos 70 e tornou-se um marco da história em quadrinhos underground nacional. “Era sensacional. Uma tiragem de mil exemplares que a gente saía vendendo de mão em mão. Não ganhava dinheiro, mas a gente se divertia.” Marcelo nos serve vinho. Chico balança a taça, dá o primeiro gole e retoma o fio da meada. A faculdade de arquitetura, ele brinca, foi muito útil para lhe ensinar a pregar quadros e escolher móveis. “Nunca consegui imaginar que alguém fosse morar num desenho meu. O arquiteto tem noção de que um traço é uma parede. Para a gente não, o traço pode ser mil coisas.”
O chargista até tentou trabalhar num escritório de arquitetura, mas a experiência – que lhe deu muita agonia “e até febre” – durou míseros três dias. “Pediram que eu marcasse o papel vegetal com régua. Eu ia suando, suando, e aquilo caindo no papel, começou a molhar tudo, ficou uma m… Aí comecei a dar valor ao desenho à mão livre que eu sempre fiz. O desenho é fantasia, a casa é realidade. Uma casa minha não ficaria pronta nunca. Foi depois disso que resolvi que eu realmente queria desenhar para jornal.”
“O principal é encontrar a síntese”
Desde que começou, há 45 anos, Chico já passou por vários periódicos, como Opinião, Movimento, Gazeta Mercantil, revista IstoÉ, Jornal do Brasil e por fim O Globo, jornal onde trabalha há quase 30 anos. “Eu gosto do fechamento diário, do desafio de fazer para aquele dia.”
Sem contar os meses em que tirou férias, seus desenhos só deixaram de aparecer uma vez, no dia seguinte ao sequestro do ônibus 174 por um assaltante no Rio, que terminou com a morte do bandido e de uma refém. Naquele dia, Chico escreveu apenas uma mensagem no lugar da charge: “Peço desculpas aos leitores, mas pela primeira vez, em 35 anos de trabalho, não consegui sintetizar com humor os fatos do dia.” Marcelo aparece com os pratos. Depois de uma pausa para salpicar queijo ralado na massa e dar a primeira garfada, ficamos sabendo como é o “método Chico Caruso” de trabalhar. O chargista costuma tomar o café da manhã já lendo os jornais. Três manhãs por semana são dedicadas a preparar as charges animadas para a TV Globo. Almoça, veste “pijama e máscara” e, como um bom espanhol, faz uma sesta. Em seguida, parte para a redação de O Globo, onde continua lendo os jornais e ouvindo as notícias da televisão, que fica ligada o tempo todo.
“A notícia vai entrando em mim por osmose. Deixo aquele negócio completamente despreocupado. Não fico pensando no que fazer.” É só a partir das 18 horas que o chargista começa a rabiscar. Usa lápis de cor, lápis-aquarela, tesoura e cola. “Agora está todo mundo no computador, mas eu não tive tempo de aprender. Sou do estilo ‘velhoshop’.” Faz uma pausa, espeta com gosto mais uma meia-lua da massa. “Hum”, diz, saboreando, “está sensacional, sensacional.” Assunto para chargistas, ele garante, nunca falta. “A luta é conseguir fazer a coisa que seja mais sintética e mais visível daquele dia. O principal, e mais divertido, é encontrar a síntese.”
“É um prazer botar a caricatura no palco”
Quero saber quais foram os momentos políticos e personagens mais inspiradores para seu trabalho. Os ex-presidentes Itamar Franco, José Sarney e Lula “foram um prato cheio”. “O Lula era bem mais fácil, ainda mais para as charges da televisão em que eu faço a voz.”
O mais difícil, ele diz, é desenhar gente muito bonita ou muito feia. “O cara já é uma caricatura, fica difícil repetir aquele negócio”, observa. “O Fernando Henrique era difícil, muito bonitinho. Não sei por que o Aroeira desenhava ele dentuço.” O celular de Chico toca. Ele atende e arregala os olhos. “Aroeira! Não acredito. Sensacional!” Era o amigo, chargista do jornal O Dia e companheiro de show. “Acabei de falar de você. Fala aqui com ela.” E me passa o telefone. “Olha”, diz a voz do outro lado da linha, “o Chico é uma força da natureza, um cara genial.” Quando desligo o telefone, Chico explica a diferença entre cartum, charge e caricatura, usando a câmera fotográfica como analogia. O cartum seria o plano geral, a piada que todo mundo entende, como a do náufrago, e são sempre temas universais. Quando você aproxima a câmera, pegando o chamado plano americano, da cintura para cima, e localiza a piada, aí é charge. A caricatura seria o close, que busca o específico daquele sujeito.
Além de chargista, Chico é humorista e músico desde 1985. Os irmãos Caruso faziam parte do júri do Salão de Humor de Piracicaba, descobriram ali colegas que tocavam algum instrumento, como o escritor Luis Fernando Verissimo e Aroeira, e desde então vêm se apresentando. “É um prazer botar a caricatura no palco, dá uma outra dimensão para o desenho, que é mais frio e cerebral. O show é envolvente, as pessoas te abraçam, é sensacional. Ninguém me abraça por causa do meu desenho.” Sobremesa? Chico vai de sorvete de chocolate com amêndoas e sorvete de zabaione com calda quente. Como não pedimos nada, ele sugere que Marcelo traga três colheres.
Exagero revelador
Chico tem um ateliê, a poucos metros de seu apartamento no Leblon, que serve de depósito para fantasias, perucas e cenários usados nos shows. Um desses espetáculos, ele conta, tinha o ex-presidente Itamar Franco como protagonista. “Era uma dupla esquizofrênica. Um era o moço caipira do interior, o outro, um homem terrível de Juiz de Fora.” E, animado com o assunto, canta uma das músicas que compôs para o show. Estende as mãos para a frente, para dar mais dramaticidade à cena, e solta o vozeirão: “Eu sou Itamar e o outro Tapior/ Tudo o que eu faço eu desfaço na maior/ Tudo o que eu penso eu dispenso logo/ Tudo o que eu bolo eu embolo e deixo tenso…”
Quando acaba, dá uma colherada no sorvete e revela: “Canto em qualquer lugar, minha mulher não aguenta mais. É só eu beber um pouquinho… Sou insuportável.” No próximo show, o personagem principal será Joaquim Barbosa – o atual presidente do Supremo Tribunal Federal. E, com o prato já vazio do doce e a boca cheia de orgulho, conta: “Meu filho é comediante.” Fernando Caruso tem um programa no Multishow além de fazer comédia stand-up. Vocês trocam ideias sobre o trabalho? “Nada de troca, eu dou dicas e ele não devolve nada”, brinca. A outra filha, Marina, é editora-chefe da revista Marie Claire e está grávida. “Acho que não estou preparado para ser avô. O meu foi tão legal com a gente, não sei se vou conseguir ser tão legal como ele foi”, fala, antes de dar o último gole em seu licor.
Já passa da meia-noite quando peço a conta. “A Anna pediu para dizer que vocês são nossos convidados”, diz Marcelo. Insisto em pagar, mas ele é irredutível. Antes de sair, Chico faz uma dedicatória e uma caricatura da repórter no livro sobre Picasso. “O único trabalho mais universal que fiz. Porque a charge é perecível, os políticos passam.”
Mas, como bem disse o escritor e seu amigo Verissimo, na apresentação do livro Os Filhos da Dinda (Scritta Editorial, 1992): “Desconfio que quando esta fase da vida brasileira que atravessamos com lama pelas canelas for história remota, os pesquisadores a reconstituirão a partir do trabalho de seus chargistas, os únicos que chegaram perto do absurdo reinante com o instrumental apropriado: um olho cético, uma mão ligeira e o gosto pelo exagero revelador.”
***
[Adriana Abujamra, do Valor Econômico]