Aproveito a abertura da bela exposição de Sérgio Sister, na Pinacoteca do Estado [em São Paulo], para visitar também a mostra de Waltercio Caldas, que desde a década de 1970 se consagrou como um dos mais imaginosos e inquietantes artistas contemporâneos brasileiros. A inteligência e o rigor intelectual de Waltercio são famosos no meio da arte. Dizem até alguns, em tom de boutade, que quando ele fala as palavras já saem em itálico.
Vou caminhando absorto pelas salas, em meio à magnífica panorâmica do artista, quando, de repente, me deparo com o jornalista, crítico e ensaísta Rodrigo Naves.
Uma satisfação encontrá-lo ali. Por vários motivos, um deles porque o conheci juntamente com Waltercio Caldas, em animadas reuniões para o lançamento de um jornal alternativo, no final da década de 1970, que se chamava Beijo.
Publicado pela editora Boca, funcionava em regime de autogestão. Era uma iniciativa do jornalista Julio Cesar Montenegro, figura brilhante e divertida, que na época havia deixado a editoria de Cultura do Opinião.
Bem, o ponto é que havia ali uma inclinação a fugir do cardápio tradicional da imprensa alternativa, em especial na área de cultura, onde predominava uma visão nacional-populista. O Beijo estava disposto também a questionar mitos culturais e ideológicos progressistas e a levantar temas recalcados pelo debate de esquerda da época – como feminismo, homossexualidade, desejo e liberdade intelectual.
Socialismo real
Natural que colegas de esquerda virassem o rosto para o jornal, que classificavam, não sem razão, de anarquista. Criticar a União Soviética, o maoísmo ou o regime castrista seria um erro, pois se fazia o “jogo da direita”. Ou seja, para a esquerda – com exceção de poucos, como os trotskistas da Libelu – o certo era silenciar sobre as perseguições a homossexuais, as internações “psiquiátricas” de dissidentes, os assassinatos políticos e os campos de concentração, um cortejo de horrores que assombrava o projeto socialista de uma sociedade igualitária, livre e justa. Tudo isso, claro, já dez anos depois do Maio de 68, da Primavera de Praga e do tropicalismo. Papo antigo.
Agora, mais de trinta anos depois da efêmera experiência do Beijo, comento com Rodrigo Naves o showzinho fascista encenado por militantes do PC do B e do PT, que impediram a exibição de um filme e tentaram silenciar a blogueira Yoani Sánchez em sua visita ao Brasil. Ou seja, pegaram a cubana e aplicaram um controle social nela.
O tempo passou, o socialismo real desmoronou, o PT se tornou um partido quando muito socialdemocrata, aliado a setores da direita, e a nossa “burritzia” (termo cunhado, aliás, por Fernando Mesquita, num artigo para o Beijo) continua aí, dura na queda.
Inspetores ideológicos
Na mesma semana, durante a festa de 10 anos de “occupy Alvorada” promovida pelo PT, o mesmo espírito policialesco se manifestou. Militantes deram um pontapé numa jornalista da Folha e a chamaram de prostituta da imprensa. O uso do termo prostituta nesse contexto já diz bastante sobre a mentalidade da tropa.
No vaivém das exposições de sábado, ocorreu-me de visitar outro dissidente – Ai Weiwei, que mostra seus trabalhos no MIS. Como se sabe, é um artista chinês perseguido pelo governo (De esquerda? De direita?) de seu país. Não deu tempo. Fica para depois. Só espero que nossos inspetores ideológicos não resolvam interromper também a exposição de Weiwei.
***
[Marcos Augusto Gonçalves é colunista da Folha de S.Paulo]