Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Jogo mortal

Um adolescente sai de uma pequena cidade no interior da Bolívia, viaja muitos quilômetros para assistir a uma partida de futebol. Ele ama o futebol e não sabe que morrerá em meio ao jogo.

Um adolescente do outro lado da Cordilheira dos Andes, em São Paulo, consegue autorização da família para viajar ao exterior e torcer por seu time em Oruro, Bolívia. Ele ama o futebol. E não sabe que vai matar o adolescente boliviano, que, como ele amava os Beatles e os Rollings Stones.

O que vai morrer tem 14 anos, o que vai matá-lo tem 17. Não se conhecem. Cada um em sua cidade vive sua adolescência e sua paixão pela bola, vão a festas a pensam nas garotas a conquistar. A morte é uma coisa muito distante para eles.

Mas Kelvin Beltran sai de sua casa no interior da Bolívia para assistir a partida do time San José a uns 3 mil metros de altitude, e desconhece que seu assassino, ao nível do mar, saiu de casa para matá-lo acidentalmente. Nem um nem outro sabe que estarão ligados pela vida e pela morte, vivem a muitos quilômetros, falam línguas diferentes, torcem por times diferentes, mas têm um funesto encontro marcado no estádio de Ururo.

Flor alguma

Cada um entrou no estádio e se endereçou para o espaço de suas torcidas.

O jogo segue com dribles, barulhos, faltas e gols. O juiz faz seu trabalho, os jogadores correm, os locutores falam ruidosamente. Ninguém, como aconteceu na boate Kiss em Santa Maria da Boca do Monte, está pensando no caráter aniquilador de um rojão ou de um simples sinalizador feito para salvar vidas no mar e na terra.

De repente, acontece.

A partida mal começou, passaram-se apenas 5 minutos do primeiro tempo do jogo. Se fosse num minuto anterior (ou posterior) o adolescente boliviano teria escapado com vida. Se o movimento do atirador fosse diferente, o projétil não teria entrado na cavidade craniana da vítima. Se o jogador que fez aquele gol tivesse errado o chute, não teria havido morte.

1 a 1, a hora em que o gol da morte empata com a vida.

A vida e morte tiveram um encontro marcado no Estádio de Oruro.

Nenhuma flor, nenhuma lágrima, tornará essa tragédia irreversível.

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[Affonso Romano de Sant’Anna é poeta e escritor]