Esse negócio de Google tirou a graça de muitas coisas. E dificultou a vida dos que mourejam nas letras, obrigados por profissão e ganha-pão a escrever com regularidade, fazendo o que podem para atrair o interesse de leitores e mostrar serviço, pois bem sabem que a mão que afaga é a mesma que apedreja e o quem-te-viu-quem-te-vê será o destino inglório daqueles que dormirem no ponto. Antes do Google, o esforçado cronista recorria a almanaques e enciclopédias e deles, laboriosamente, extraía novidades para motivar ou adornar seu texto. Agora todo mundo pode fazer isso num par de cliques. Além do mais, o cronista podia também exibir-se um pouco, o que talvez trouxesse algum benefício ao combalido Narciso que carrega n'alma, além de realçar-lhe a reputação. Somente alguns poucos, entre os quais ele, tinha tal ou qual informação, ou lembrava certos pormenores, em relação ao assunto comentado. O Google acabou com isso e quem hoje em dia chegar ao extremo de escrever algo do tipo “você sabia?” se arrisca a desmoralização instantânea.
Mesmo consciente desses perigos, ouso dizer que a maior parte de vocês não sabia que hoje é o dia do telefone. Eu por acaso sabia e me lembrei assim que vi a data no calendário. E também já sabia de uma porção de coisas adicionais, inúteis mas talvez vistosas. Tudo isso, juro que é verdade, sem recorrer ao Google. Faz mais tempo que eu gostaria de admitir, escrevi um trabalho escolar sobre Alexander Graham Bell, o inventor do telefone, e não me esqueci de fatos importantíssimos. Para começar, Bell não era americano, como geralmente se pensa; era escocês. E, se vocês pasmaram com esta, pasmem com a próxima: nos primeiros telefones, não se falava e escutava ao mesmo tempo, era como nos walkie-talkies dos filmes de guerra americanos e os interlocutores tinham que dizer “câmbio”, ao terminarem cada fala.
E, sim, D. Pedro II garantiu o papel do Brasil no sucesso da invenção. Os historiadores americanos lembram como Sua Majestade, durante uma feira internacional em Filadélfia, ficou estupefato com o novo aparelho e exclamou: “Meu Deus, isto fala!” Parece que ele botou mais fé na novidade que os americanos, porque o presidente americano Rutherford B. Hayes declarou mais tarde que se tratava de um aparelho interessante, mas sem nenhuma utilidade. D. Pedro ganhou um e as centrais telefônicas começaram a se instalar no Brasil, notadamente no Rio de Janeiro e, segundo eu li, tinham o hábito de pegar fogo com grande frequência. O coronel Ubaldo, meu avô, como vários de seus contemporâneos, na hora de falar no telefone, botava o paletó e passava a mão na careca, parecendo ajeitar uma cabeleira invisível e, depois que contaram a ele que funcionava com eletricidade, acho que nunca mais tocou em nenhum.
Colmeia interligada
E mais sensacionais revelações eu teria a fazer, mas suspeito que todas podem ser achadas no Google, para quem for suficientemente obsedado. O que não se acha no Google são minhas memórias pessoais em relação ao telefone. A primeira lembrança é o telefone lá de casa, quando morávamos em Aracaju. Se não me engano, o número era 631 e o aparelho ocupava um espaço solene, no corredor de entrada. Recordo as duas enormes baterias, com o formato de pilhas de lanterna, mas muito maiores. Pegava-se o fone, rodava-se a manivela e falava-se com a telefonista, para pedir a ligação. Nessa época, Salvador já tinha telefones automáticos, parecidos com os que a gente via no cinema e com um número enorme. O da casa de meu tio Cecéu, por exemplo, era 8521 e eu causava grande inveja em meus colegas de Aracaju, quando dizia que meu telefone em Salvador tinha esse numerozão – e sem telefonista.
Já as ligações interurbanas eram um problema, mesmo em Salvador ou qualquer outra cidade. Nem sempre se conseguia e o telefonema tinha que ser programado com muita antecedência. Às vezes, esperava-se o dia inteiro pela ligação. Quando a conversa se iniciava, as vozes se perdiam numa fanfarra de zumbidos, estalos, pequenos estampidos e ruídos de toda espécie, em que os telefonadores se esgoelavam em gritos altos e palavras repetidas aos berros. Era inevitável a suspeita, em alguns casos convicção, de que seria mais eficaz chegar à janela e soltar esses berros na direção da cidade para onde se telefonava, levando o papo diretamente no gogó, sem precisar de nenhum aparelho.
Pois é, nada como um dia depois do outro. Ainda passei por mentiroso, quando, regressado ao Brasil depois de uma longa temporada nos Estados Unidos, contei que o sujeito em Los Angeles discava diretamente para Nova York, na outra ponta do país, a ligação se completava como se fosse local e se ouvia perfeitamente a voz do lado de lá. Estabelecia-se um silêncio constrangido entre os ouvintes e não eram raros comentários elogiando minha fértil imaginação de romancista. O curioso é que lá eu também passava pela mesma situação, quando contava que, no Brasil, havia gente que esperava a instalação de um telefone durante décadas e as linhas eram valorizadas como excelente investimento e deixadas como herança.
Por fim, chegaram os celulares e tabletes. Tem gente que não larga o celular nem no chuveiro e dizem que já é até um acessório sexual indispensável para muitos. Creio que, no futuro próximo, os recém-nascidos, ainda na maternidade, terão vários chips implantados no cérebro e serão conectados antes de aprenderem a falar, talvez numa rede social especializada. Um chip, secretamente instalado no celular do cônjuge infiel, mostrará à parte corneada o endereço exato do motel onde o (a) sem-vergonha prevarica. Um aplicativo ora sendo aperfeiçoado saberá, por sutis alterações na voz, quando quem fala está mentindo. Realiza-se o sonho de não passarmos de uma colmeia toda interligada, em que não haverá vida privada. Feliz dia do telefone para todos.
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João Ubaldo Ribeiro é jornalista e escritor