Quem observa a trajetória do radialismo rock no Brasil pode notar uma estranha conduta que a rádio paulista 89 FM – dita “A Rádio Rock” – sempre teve em sua trajetória. Sua abordagem da cultura rock sempre soou estereotipada demais para o perfil e, se hoje a rádio parece “muito querida” por vários ouvintes, que, de forma exagerada e improcedente, a viam como “rádio rock de verdade”, é por conta mais de um departamento comercial forte do que de qualquer programação convincente.
A rádio sempre enfatizou um perfil mais pop, mas o rótulo “rock” era associado até mesmo a programas que, no fundo, nada tinham a ver com rock, como Rock-Bola (futebol e besteirol), Sobrinhos do Ataíde (besteirol) e Pressão Total (game show), que poderiam ser transmitidos, sem problema, em qualquer rádio de pop convencional. A 89 adotava um tipo de locução incompatível com o perfil rock, bem mais próximo das Transaméricas da vida, e o repertório musical nunca foi além dos “grandes sucessos” do rock, geralmente os do momento. Mesmo quando tocava algum nome mais clássico, seja um Deep Purple, seja um Oasis, seja um Jimi Hendrix ou mesmo Legião Urbana, a 89 nunca tocava mais do que os sucessos mais conhecidos.
Desde a sua “vitoriosa” volta em dezembro de 2012, a UOL 89 FM apenas se limitou a retomar os mesmos defeitos que fizeram a má fama da emissora em 2005, fazendo com que a 89 passasse seis anos e meio tocando apenas pop convencional, sob a coordenação de Wagner Rocha, o Waguinho, ex-Metropolitana FM. Sem mostrar um diferencial de linguagem ou repertório – restrito aos “sucessos roqueiros” – e sem se adequar às exigências do público de rock da era da internet hoje em dia, a UOL 89 FM chegou até mesmo a cometer omissões sérias demais para uma rádio que quer parecer “séria”.
Aliança com a ditadura
No último dia 25 de fevereiro, lembrança dos 70 anos de nascimento do ex-beatle George Harrison, o portal da UOL 89 FM – http://radiorock.uol.com.br – ignorou completamente a data, desprezando o fato de que os Beatles foram responsáveis diretos pela popularização da cultura rock no mundo inteiro. Outra omissão está por conta de que a UOL 89 FM ignorar a “vida pós-Oasis” da banda Beady Eye, de Liam Gallagher, e da carreira-solo de seu desafeto irmão Noel Gallagher, ambos com significativo repertório divulgado nas rádios de fora. Em vez disso, a UOL 89 prefere tocar velhos sucessos do Oasis, como “Wonderwall” e “Don't Look Back in Anger”, como se fossem “canções novas”“.
Mas o caráter conservador da emissora, também famosa pelo fanatismo de seus ouvintes, que chegam ao ponto de fazer trolagem na internet contra quem questionasse os erros da 89, revela que existe algo de muito sombrio por trás da “rádio rock”. E que tem muito a ver com um controle empresarial que contraria, e muito, qualquer contexto de rebeldia que possa estar vinculado aparentemente com o universo da emissora.
Uma pesquisa mais cautelosa mostra que os donos da 89 FM, e agora o sócio mais recente, o Universo On Line – UOL, possuem uma clara relação de aliança com a ditadura militar. Não é desaforo nem raivinha de discordante, a relação de aliança é historicamente confirmada. Na página 271 do livro Jânio Quadros: O Prometeu de Vila Maria, de Ricardo Arnt (Ediouro, 2004), José Camargo, patriarca do Grupo Camargo de Comunicação (que inclui a 89 FM e a brega-popularesca Nativa FM) é identificado como um político do PFL (atual DEM) paulista e, juntamente com seu filho João Carlos Camargo (irmão de Júnior e Neneto que administram a 89), como “deputados malufistas”. José Camargo, o patriarca do clã do Grupo Camargo de Comunicação, havia sido ligado ao PDS paulista desde quando este partido se chamava Arena, durante a ditadura militar. Um artigo do Jornal da República, de 2 de janeiro de 1980, cita uma reunião do então governador Paulo Maluf – o vice, então, era o atual presidente da CBF, José Maria Marin – com dois adesistas da Arena. Um deles: José Camargo.
Músicos punk
Aparentemente não há um texto sobre a associação de José Camargo com o governo de Fernando Collor (1990-1992) na internet, mas quem viveu a época sabe muito bem que o antigo PDS, do qual Camargo fazia parte, apoiava incondicionalmente o governo Collor. Foi nessa época que a 89 FM foi financeiramente favorecida, o que fez a rádio jogar pesado na publicidade naquela época, enquanto pegava pesado na deturpação do perfil rock, colocando uma linguagem e uma abordagem incompatíveis com a realidade do público roqueiro no Brasil e no mundo. E olha que eram tempos pré-internet. Era só observar a grande imprensa paulista que todo dia – ou todo mês, no caso de revistas musicais. A 89 FM fazia sua propaganda ostensiva naqueles anos “coloridos”, enquanto rádios verdadeiramente rock, como Fluminense FM (RJ) e 97 Rock (SP), viviam na “pindaíba”.
Hoje, o pessoal pensa que a 89 FM foi “rádio rock de verdade”. Vendo sua programação, isso nem de longe acontece, como nunca aconteceu de fato. Pela programação – a mesma que gerou uma crise de reputação na 89 em 2005 –, o que se vê é apenas uma rádio pop um pouco mais neurótica, com um “vitrolão” que apenas chega perto de alguns macetes grunge/poser e poppy punk. E agora com a participação acionária do Universo On Line, ligado à Folha de S.Paulo, a situação piora mais ainda. Aos Camargo, ligados à Arena e a Paulo Maluf, juntou-se a Folha de Otávio Frias Filho, o mesmo jornal que havia colaborado com o temível DOI-Codi, órgão de tortura da ditadura militar, oferecendo até viaturas para transportar prisioneiros políticos.
Com esse currículo, chega a ser incoerente que músicos surgidos no punk rock brasileiro apoiem a volta da 89 FM ao rock, sobretudo Clemente, do grupo “Inocentes”, e agora também na banda Plebe Rude. Isso porque Clemente havia desafiado Gilberto Gil, então figura consagrada e sagrada da MPB, mas vivendo uma época de estrelismo e despolitização dentro de um meio conhecido como establishment caetânico por Álvaro Pereira Jr. e como “máfia do dendê” pelo também jornalista Cláudio Júlio Tognoli. O punk rock na virada dos anos 70 para os 80 no Brasil desafiava a ditadura militar, fazia protestos contra os males desse período político bastante delicado, o que chamou muito a atenção até mesmo de jornalistas britânicos e norte-americanos, que viam um cenário bem menos politizado que a cena brasileira.
Vinhetas “iradas”
Só que nomes como Clemente, Philippe Seabra e João Gordo (apesar deste ter se tornado uma figura fácil dentro de um contexto não-roqueiro da TV aberta) acabam se esquecendo disso quando passam a apoiar a 89 FM / UOL 89 FM (escreve-se assim para evocar as duas fases da 89), de um perfil bastante conservador, só porque ela é a escolhida oficialmente pelo mercado para representar o radialismo rock, com todo o seu QI nada roqueiro.
A memória curta das pessoas, ou mesmo os pitacos que dão as pessoas que não necessariamente são entendidas em rock, fizeram com que a volta da 89 FM fosse superestimada. Mas, por debaixo dos panos, a 89 FM voltou com os mesmos propósitos de sua origem em dezembro de 1985: capitalizar em torno do mercado de shows internacionais, como “alimentadora” de um filão fortalecido pelo primeiro Rock In Rio. Se for por esse enfoque, o rótulo “A Rádio Rock” da 89 FM é tão postiço quanto a marca Rock In Rio (de Roberto Medina, filho do lendário Abraham Medina da rede de lojas “O Rei da Voz”), associada a eventos que não são necessariamente de rock. Este ano, o Rock In Rio, de volta às terras brasileiras, terá Ivete Sangalo e Justin Timberlake, uma cantora de axé-music e um cantor de pop dançante.
Até mesmo a conduta “roqueira” da 89 sinaliza muito mais como formadora de um público consumidor de sucessos roqueiros do que um público que realmente entenda de cultura rock. A rádio nunca teve o estado de espírito nem uma filosofia de trabalho necessários para uma autêntica rádio de rock. Não se fazem rádios rock de verdade apenas com logotipos de impacto ou vinhetas “iradas”.
Opções na internet
A Rádio Fluminense FM, que havia feito uma celebração exemplar de seus 30 anos de surgimento, no ano passado, havia mostrado que, em 1982 e 1985, uma rádio de rock não se faz com logotipos, vinhetas ou ouvintes temperamentais, mas com muito conhecimento de rock, muita competência e vocação. E, acima de tudo, respeito ao público de rock e à sociedade em geral.
São receitas que, infelizmente, a 89 FM nunca se interessou em seguir, pelos seus limites de rádio comercial controlada por empresários conservadores. A rádio pensou que, adotando uma mentalidade pop, não teria problemas no radialismo rock, mas, a julgar dos conflitos em que adeptos da 89 FM e roqueiros em geral têm de vez em quando na internet, mostra que esses problemas existem e são muito graves para um contexto em que a cultura rock autêntica está mais acessível na internet.
Exigentes e criteriosos, os roqueiros autênticos continuam ouvindo as rádios do exterior, os arquivos de áudio do YouTube, as gravações em MP3 ou a habitual coleção de CDs, em vez de aceitarem serem tratados de forma idiotizada e infantilizada pela UOL 89 FM e sua linguagem pop demais para o radialismo rock.
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Alexandre Figueiredo é jornalista e autor dos blogues Mingau de Aço e O Kylocyclo