Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A anticoncorrência do futebol

A versão americana online de segunda-feira (25/3) do Wall Street Journal publicou um artigo sobre um momento europeu que poderia ser pauta permanente da imprensa brasileira. O texto original vem traduzido abaixo.

O assunto parece ser proibido no Brasil; os editores de jornais e revistas (blogs também) pensam que o público leitor de futebol não quer saber do assunto; o público leitor de futebol pensa que futebol é só bola, jogador, fantasia na arquibancada com foto de celular no estádio, telão em cervejaria ou em casa com amigos (para o desespero de vizinhos que não curtem futebol) e apostas online, que existem ilegalmente no país, e crescem a uma velocidade vertiginosa; enfim, ignora-se que o poder atômico do futebol não atinge o cotidiano de todos nós.

O campeonato brasileiro (com jogos nas quartas-feiras, quintas-feiras, sábados e domingos mobilizando milhões de pessoas), a Copa do Mundo (que mexe na agenda de presidentes de vários países), a indústria do futebol servindo ao mesmo tempo de canteiro de obras públicas, chão de fábrica e vitrine para virtualmente qualquer produto e tipo de consumidor (classe, gênero, credo, etnia, preferência sexual etc.) não são suficientes para merecer espaço semanal em jornal para a questão dos conflitos entre o direito desportivo, a livre iniciativa de mercado e a justiça comum. A imprensa brasileira parece o Flávio Murtosa, no banco: braços cruzados, e só cochicha.

O artigo de Jean-Louis Dupont suscita a pergunta: como pode a organização de uma atividade esportiva acumular tanto poder, a ponto de colocar em questão avanços tão significativos da civilização contemporânea, como a livre iniciativa e a justiça comum? O início da resposta: Futebol 10 x 0 no Estado de Direito. Por causa daquele poder atômico? Por causa da pusilanimidade dos tomadores de decisão? Por causa da submissão do público em geral? Tudo isso e muito mais.

A seguir, a tradução integral do artigo de Jean-Louis Dupont, advogado belga famoso por conseguir ganho de causa no Caso Bosman (1995), uma versão europeia mais complexa do nosso Caso Afonsinho (1974), o primeiro jogador brasileiro a conquistar o passe livre, em plena ditadura militar. Mas é claro, caro observador, leia desprezando o futebol como fio condutor, pois é muito mais do que isso. (Luís Peazê, jornalista, autor de Futebol 10 x 0 no Estado de Direito, editor da Clínica Literária)

 

Normalmente, se uma associação setorial introduz regras que levantem barreiras para a entrada ou trincheira de players, os reguladores de antitruste entram em pé de guerra. Mas a UEFA – União Europeia das Associações de Futebol – parece desfrutar do apoio, encorajamento inclusive, da Comissão Europeia para as novas regras que farão exatamente isso.

As regras FFP (Financial Fair Play, fair play financeiro), que entram em vigor a partir de 2013/2014, previnem que os clubes de futebol gastem mais do que eles faturam anualmente. Os clubes que não se alinharem com o princípio do “ponto de equilíbrio” (break-even point) terão que encarar sanções, incluindo a potencial proibição de participarem de competições da UEFA.

As novas regras, propostas desde 2009, supostamente pretendem evitar que os clubes administrem suas perdas financeiras pagando apenas os juros, acumulando o principal e adquirindo sucessivos empréstimos, que, de acordo com a UEFA, vem ameaçando a ambos, clubes altamente populares, individualmente, e o futuro do futebol europeu como um todo.

Conluio

Tudo isso soa razoável, à primeira vista. Mas, como um acordo no qual os participantes de uma indústria decidem juntos limitar investimentos, o FFP parece constituir-se num conluio e, desta forma, uma violação da lei de concorrência da União Europeia (EU). O FFP ainda pode infringir outras liberdades da UE, tais como a livre circulação de trabalhadores e serviços. Mas esta não é a visão da Comissão Europeia (CE).

Em carta datada de 12 de março de 2012, o responsável na CE pela concorrência, Joaquin Almunia, escreveu para o presidente da UEFA, Michel Platini, para dizer que dá as boas vindas à regra do break-even, declarando: “Esse princípio está coerente com as buscas e objetivos das políticas da UE no campo do subsídio estatal”.

Mas o Tribunal de Justiça Europeia deve enxergar isso bem diferente. E esse não seria o primeiro caso no qual as regras do esporte são derrubadas pelo tribunal superior da UE. Em 1995, no Caso Bosman, o Tribunal de Justiça da CE deu ganho de causa contra restrições que impediam jogadores de futebol de trocarem de clubes, após seus contratos expirarem. A corte de Luxemburgo também proibiu ligas domésticas de futebol e da UEFA de estipularem cotas do número de jogadores não europeus permitidos nos clubes.

No julgamento Meca-Medina, em 2006, o Tribunal de Justiça da CE estabeleceu um precedente ainda mais importante: que os esportes não se constituem um caso especial acima da Lei da UE. O Tribunal deve aplicar esse critério ao esporte, como faz para qualquer outra área da atividade econômica. Eu estive envolvido em ambos os casos, e gostaria de observar que em cada instância os órgãos governamentais tiveram, inicialmente, total apoio da CE.

O critério relevante para as regras dos esportes, portanto, é que se elas interferirem na concorrência, ou outra liberdade da UE, elas devem fazê-lo não além do que é necessário para buscar objetivos legítimos. Está claro que o FFP interfere na concorrência e na liberdade da UE. A jurisprudência na União Europeia tem sustentado que os jogadores de futebol são a matéria-prima dos clubes de futebol, que produzem os seus produtos finais. O FFP é um acordo conjunto entre os clubes para limitar a liberdade de contratar jogadores, restringindo sua capacidade de gastar em salários e transferências. Essa restrição da liberdade de concorrência pode, ao mesmo tempo, se constituir na violação da livre circulação de trabalhadores.

Anticoncorrência

A outra questão é se os objetivos do FFP são legítimos e necessários. A UEFA estabeleceu vários objetivos para o FFP; o primeiro é preservar no longo prazo a estabilidade financeira do futebol europeu. Isto é louvável, mas improvável que seja considerado tal objetivo fundamental para justificar restrição à concorrência.

O segundo objetivo, preservar a integridade do jogo nas competições da UEFA, pode ser visto com melhores olhos. Mas, na verdade, o FFP parece criar mais obstáculos do que ajudar a esse respeito.

Os clubes europeus de futebol são caracterizados por inúmeros desequilíbrios competitivos: entre os clubes que competem na UEFA, entre as ligas domésticas de diferentes países, e entre os clubes, individualmente, nessas ligas. Muitas vezes, a chave determinante da força financeira de um clube é o tamanho de seu mercado doméstico e a sua realidade comercial – competir na Primeira Liga Inglesa sempre será mais lucrativo do que na sua concorrente, a Liga da Escócia. Consequentemente, os clubes líderes de países menores, tais como Luxemburgo ou Irlanda, sempre estarão em desvantagem ao lado dos clubes líderes de mercados maiores.

A regra do break-even não faz nenhuma concessão a disparidades comerciais entre ligas nacionais, individualmente, o que significa que os clubes menores são atingidos com maior força, proporcionalmente, do que os grandes. Sem a capacidade de investir a longo prazo, os clubes menores continuarão pequenos. Isto é claramente a anticoncorrência.

Mesmo que o FFP fosse suficientemente legítimo e necessário, para justificar esta interferência nos princípios da UE, entretanto, ainda teria que limpar um último obstáculo: a proporcionalidade. A UEFA teria que convencer os juízes da UE em Luxemburgo de que o FFP é o meio menos restritivo de alcançar aqueles objetivos.

Isso parece improvável. Regulamentações já existentes da UEFA requerem dos clubes provarem, antes do início de cada temporada, que eles não têm contas a pagar vencidas para outros clubes, para seus empregados ou autoridades tributárias. Com essas salvaguardas em vigor, é difícil ver a razão de precisarmos impedir os clubes de incorrer em perdas, se e quando eles podem ser financiados com segurança por meio de recursos a sua disposição.

Para chamar a atenção

Caso o Tribunal da CE declarar o FFP inválido, a decisão valerá para todas as regras baseadas no FFP, adotadas em nível nacional. A legislação da UE se aplica também a práticas restritivas que afetem o território de qualquer Estado membro.

Entretanto, nenhum dos princípios da legislação das concorrências impede a UEFA de melhorar o modelo financeiro do futebol. Caso a UEFA esteja mesmo determinada a atacar a questão, ela deveria atacar as raízes do desequilíbrio de competitividade entre os times. O modelo territorial da UEFA poderia ser redesenhado, por exemplo, para permitir que clubes de cidades importantes, mas de países pequenos, se tornem mais competitivos. Compartilhamento mais ambicioso de receitas, entre os clubes e/ou de toda a liga, parcialmente financiados por um “imposto de luxo” sobre clubes de altas despesas, poderia ajudar também.

Mas tais soluções concorreriam contra os interesses dos clubes com maior influência política. Alguns dos maiores clubes europeus são, surpreendentemente, os maiores apoiadores das regras que entrincheiram os seus domínios. O momento é ideal para um lembrete bem forte às autoridades antitruste da União Europeia de que, tal qual em qualquer outra indústria multibilionária do euro, o futebol deve cumprir a lei.

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Jean-Louis Dupont é um advogado especializado em esportes profissionais