Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A morte de um símbolo

Não há nada que seja mais representativo do fim de uma época do que a queda de seus símbolos. Isto aconteceu no fim do absolutismo, em 1789, com a tomada da Bastilha, na França. Também pode ser visto durante a revolução bolchevique, na Rússia, em 1917, com a derrubada dos símbolos religiosos. Voltou a ocorrer no colapso do comunismo, com a queda do Muro de Berlim, em 1989. Reapareceu no fim do domínio do império de Saddam Hussein, durante a Segunda Guerra do Golfo, transmitida ao vivo pela televisão, em 2003, como se fosse um jogo de videogame. E esteve mais uma vez presente durante o esplendor da Primavera Árabe, em 2007, quando o povo queimou, em praça pública, as efígies das dinastias seculares.

Nestes primeiros anos do século 21, assistimos o fim do ciclo do Estado do bem-estar social na União Europeia, com uma combinação sistêmica de queda do PIB, desemprego crescente, endividamento público elevado, escassez de crédito, fuga de capitais e redução generalizada das notas dadas por agências de risco (ratings) das nações, gerando uma crise de confiança internacional. O símbolo maior desta crise foi, sem dúvida, a imagem da escultura Vênus de Milo (originária da Grécia), na capa da revista alemã Focus, em 2010, acusando a própria Grécia, bem como Portugal, Espanha e Itália de estarem matando o euro. A imagem correu o mundo e provocou um misto de euforia e indignação entre os europeus.

O fato é que os sinais de que estamos vivendo a mudança de uma era são absolutamente categóricos. Não há dia em que os indicadores ou os dados econômicos não indiquem piora do estado de saúde da economia ocidental, impasses na ordem política internacional, novos cenários para a ciência e tecnologia, aventuras estéticas no mundo da arte e da cultura e transformações significativas nos processos sociais, provocados pelas tecnologias da informação e da comunicação.

Órfãos do ideal iluminista

Um dos acontecimentos mais significativos deste século 21 aconteceu há exatamente um ano. No dia 14 de março de 2012, a empresa produtora da Encyclopaedia Britannica anunciou o fim da publicação impressa, depois de 244 anos de circulação. Neste caso, o significado ou a simbologia do fim daquele que poderemos chamar de “o celeiro universal do conhecimento” foram muitos mais explosivos do que o fato em si. O encerramento da edição impressa da Enciclopédia representou, na minha visão, o símbolo categórico do fim de uma dos mais pujantes capítulos da história mundial.

O significado desta “morte” da edição impressa reside no caráter implosivo dos valores iluministas e renascentistas, marcados pelo ideal enciclopedista europeu do conhecimento humano e do saber natural para a estruturação utópica do melhor dos mundos. Não foram poucos os filósofos e os cientistas empenhados neste grande projeto mundano, energizados permanentemente pelo mito de Prometeu e pelas promessas redencionistas dos paradigmas modernos.

O fim da Encyclopaedia Britannica parece, portanto, o encerramento do próprio projeto da modernidade pelo fato de que a materialização de nossa utopia dependia necessariamente do processo de sistematização e de compêndio do conhecimento humano. Quando nossa referência-mestre se dissipa nas redes inquietas do mundo digital passamos a nos sentir um pouco órfãos deste grande ideal iluminista.

Símbolos dos novos tempos

É verdade que o conhecimento acumulado ao longo destes 244 anos da Encyclopaedia Britannica continuará vivo e sendo retroalimentado a cada 20 minutos, estando disponível para as pessoas, em todo o planeta, sempre que houver um computador conectado à internet. E que as formas das novas gerações estabelecerem procedimentos de acesso, processamento, armazenamento e consumo de informações e conhecimento serão, naturalmente, diferentes daquelas das gerações que sonharam as belas utopias dos séculos 18 e 19.

Não sei quantas pessoas acessaram a Enciclopédia Britânica digital nestes últimos doze meses. Não sei se alguém se desviou das tentações de buscar suas respostas no Google ou no Wikipédia, ao invés da obra inglesa.

No fundo, acredito que o que mais importa, me parece, não é saber onde estarão os livros e o conhecimento acumulado, qual a suas novas formas de leitura e reprodução, ou no que se transformaram as bibliotecas e as enciclopédias. O que mais importa, realmente, será descobrir, neste novo eldorado eletrônico e digital, o que estão a anunciar os símbolos dos novos tempos.

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Leandro Marshall é professor universitário, doutor em Ciências da Comunicação, pós-doutor em Sociologia, mestre em Teorias da Comunicação e especialista em Filosofia