Um dos rótulos da ESPN é de que concede pouco espaço ao jornalismo esportivo de qualidade, concentrando-se mais em transmissões de eventos e programas de informações e debates sobre os jogos. Mas na última semana, dentro do espaço diário concedido a uma cobertura investigativa, a ESPN superou a barreira do marasmo e cumpriu um dos objetivos supremos do jornalismo, causando um resultado ímpar na história da emissora.
O episódio de maior destaque foram as imagens apresentadas no programa Outside The Lines da terça-feira (2/4), do treinador de basquete masculino da Universidade Rutgers (pública do estado de New Jersey) Mike Rice, agredindo física e verbalmente seus atletas. A violência gratuita ocorria nos treinos e Rice chutava os garotos, os ofendia com xingamentos de cunho homofóbico e os intimidava com gritos inapropriados.
Rice foi demitido na quarta-feira seguinte.
No domingo (31/3), o mesmo programa (OTL) apresentou uma denúncia que instituições de caridade de esportistas americanos descumprem padrões básicos exigidos de fundações sem fins lucrativos. Foram investigadas 115 instituições e 74% delas não corresponderam às metas estipuladas por auditorias reguladoras. Um furo de reportagem que abalou a reputação de muitos atletas dos esportes americanos, como Lamar Odom (basquete), Randy Moss (futebol americano), Baron Davis (basquete) e Alex Rodriguez (beisebol). Essa matéria demorou oito meses para ficar pronta, entre denúncias, investigação, apuração… A reportagem de Mike Rice, tão trabalhosa quanto, teve de ser feita em menos de uma semana…
Cauteloso e certeiro
Isso porque a ESPN precisava rapidamente veicular as reclamações que recebeu via 219 DVD’s com imagens dos treinamentos de Rutgers. Se houvesse demora, a universidade poderia saber do vazamento e antecipar ações. A ESPN escalou três produtores, dois repórteres (um foi vencedor do prêmio Pulitzer, Don Vatta Jr.), quatro diretores e vários produtores assistentes e editores de vídeos para assistir todos os DVD’s, obtidos na quinta, dia 28 de março. Cinco dias depois a impactante denúncia foi ao ar.
De fundamental importância foi assistir todos os DVDs, compreendo um período entre 2010 e 2012. Era necessário ter a certeza que o comportamento de Rice não era isolado, e sim recorrente. Segundo Bray, cerca de 2% de cada treino Rice mostrava atitudes inviáveis, um traço de sua personalidade. O presidente da Rutgers, Robert Barchi, pediu ao diretor atlético da universidade, Tim Pernetti, que demitisse Rice imediatamente – desligamento anunciado na quarta-feira (3/4) pela manhã. Mas por que não foi feito nada antes, já que a reitoria sabia do temperamento de Rice ao ter assistido a um vídeo de 30 minutos no dia 26 de novembro de 2012?
Na ocasião, a punição foi um “tapa de veludo”. De acordo com reportagem do jornal local Newark Star-Ledger, em dezembro Rutgers puniu Rice com uma multa de 50 mil dólares e suspensão não remunerada por três jogos. A intenção então era manter o assunto dentro dos limites da faculdade, um tratamento interno. Até por isso, a ESPN, com os DVD’s recebidos do ex-funcionário da universidade Eric Murdock, decidiu ser cautelosa e certeira no que ia propagar através de seus canais (televisão e internet). Peça que, de fato, marcou o jornalismo da autointitulada “líder mundial em esportes”.
Setor tem potencial
Afinal, é legítimo afirmar que se a ESPN não tivesse feita a reportagem especial, Rice permaneceria como treinador e os jogadores da Rutgers continuariam sendo vítimas de um homem insano. Isso tem corroboração com matéria feita pelo New York Times neste domingo (07/04) apontando que há tempos a universidade sabia das atitudes de Rice e:
“Entrevistas e documentos revelam uma cultura na universidade de se preocupar em não entrar em processos judiciais do que proteger seus estudantes de um treinador de comportamento abusivo.”
A ESPN não apenas produziu um trabalho extensivo de edição – fator importante e fundamental –, mas colocou o episódio em perspectiva, reforçando a gravidade do que acontecia em Rutgers. O assunto ganhou o mundo, reverberou em redações e catalisou processo acobertado por interesse. A ESPN satisfez uma significante lição do jornalismo e comprova que o setor esportivo da imprensa tem potencial para ser mais do que discussões fúteis e deixar de ser chacota dentro do casebre midiático.
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João da Paz é jornalista, São Paulo, SP