Marcado para começar na quarta-feira (17/4), no Tribunal Superior Regional (TSR) de Munique, o julgamento de maior relevância da Alemanha desde os anos 1970 foi adiado para o dia 6 de maio, informou na segunda-feira (15) o jornal Süddeutsche Zeitung. Atendendo a exigências da Associação de Jornalistas Alemães, o tribunal reiniciará o processo de requerimento de credenciais.
No banco dos réus, entre outros quatro acusados, estará Beate Zschäpe, acusada de ser uma das líderes do grupo extremista Clandestinidade Nacional-Socialista (NSU, na sigla em alemão), também conhecido como Célula Neonazista de Zwickau (Saxônia). A célula terrorista, supostamente liderada por Beate Zschäpe, Uwe Mundlos e Uwe Böhnhardt atuou por anos na clandestinidade. Entre os dez crimes cometidos no período de 2006 a 2011, entre eles ataques bomba e assaltos a banco, oito foram contra imigrantes turcos, um imigrante grego e uma policial alemã.
O escândalo jurídico
Mesmo a maioria dos crimes terem ocorrido na cidade de Völklingen, tida como simpatizante do partido de extrema-direita NPD, a polícia e os órgãos judiciários – em especial o Verfassungschutz, um aparato de serviço secreto para garantir a constitucionalidade das instituições no país – encerravam os casos alegando não encontrar motivos de xenofobia nos crimes.
Com a publicação de reportagem no jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung, 3 de dezembro de 2011, e a resultante pressão midiática, os órgãos judiciais decidiram reabrir os casos imediatamente. Também nessa época vazou para a imprensa que o trio Zschäpe, Mundlos e Böhnhardt era há tempos conhecido da polícia secreta, que em 1999 teria até mesmo tentado retirá-los da ilegalidade, plano que teria falhado devido ao veto do então procurador geral.
Queima de arquivos secretos na calada da noite, efeito-dominó resultante do rolar de cabeça de chefes de polícia secreta, além de um ministro da Defesa Joachim Friedrich sempre fugindo da imprensa quando o assunto é NSU, demonstram a falta de vontade política em investigar com a necessária teimosia esse caso, principalmente nas regiões da Saxônia e Turíngia.
Em dezembro de 2011, os dois supostos cúmplices de Beate Zschäpe cometeram suicídio quando estavam prestes a serem presos – ou seja, Beate Zschäpe não só será o centro das atenções da mídia internacional, mas a prova cabal do fracasso do Estado alemão em de proteger seus cidadãos independentemente da cor do passaporte.
Portas fechadas para a mídia
No contexto de credenciamento da imprensa foram concedidos somente 50 lugares marcados no tribunal. Todos para a imprensa alemã. Nem o New York Times nem a BBC obtiveram lugar fixo dentro do tribunal.
Desde que essa informação vazou para mídia três semanas atrás, o assunto midiático número 1 deixou de ser os crimes cometidos pelo trio de Zwickau, mas os insistentes e repetitivos micos do Tribunal Superior de Munique na incapacidade de encontrar uma solução coerente com a importância do processo. Não faltaram vozes oportunistas aproveitando a favorável onda midiática: o chefe do Partido Socialdemocrata, Sigmar Gabriel, já em ritmo de campanha eleitoral, declarou ao jornal Bild am Sonntag: “Os responsáveis por essa situação colocam a Alemanha como motivo de ridicularização perante o mundo”. Gabriel ainda se disse irritado com a falta de intervenção e posicionamento do governo da Baviera e do Ministério da Justiça federal. O igualmente socialdemocrata e prefeito de Munique, Christian Ude, também se mostrou insatisfeito com “a solução dada pelo Tribunal Regional”.
A mídia em peso criticou o procedimento de cessão de credenciais do tribunal referindo a “falta de entendimento da dimensão política do processo”. Nem mesmo o embaixador da Turquia em Berlim obteve um lugar no tribunal, enquanto teimava em declarar na imprensa: “Eu estarei no tribunal”.
Numa verdadeira orgia midiática, a Ordem dos Juízes Alemães também se manifestou, acusando a imprensa de jogar lenha na fogueira, “questionando a soberania e autonomia dos tribunais”.
Enquanto isso, a assessoria de imprensa do tribunal respondia à imprensa com justificativas infames como “nós fomos distribuindo as credenciais de acordo com a chegada dos requerimentos”. Um redator de um jornal turco em Berlim confirma que somente recebeu o e-mail 20 minutos depois de seus colegas alemães. A assessoria, por sua vez, retrucou: “O primeiro envio teve uma mensagem de erro e tivemos que reenviar”. Nesse meio tempo, colegas alemães se prontificaram a ceder seus lugares para jornalistas da mídia turca, o que foi explicitamente proibido pelo tribunal.
Um jornalista alemão declarou no programa de jornalismo investigativo Monitor, da TV aberta ARD: “Disseram-me que se durante o julgamento eu quiser ir ao banheiro, perderei meu assento”.
Todo mundo que se acha relevante no processo dava o seu palpite. Não faltaram sugestões: mudar de sala, disponibilizar uma transmissão de vídeo da sala ao lado, até mesmo mudar de tribunal.
O ápice do mico
Contrariando toda a tradição da Alemanha como um país de imprensa autônoma e quarto poder no Estado, o Tribunal Superior Regional de Munique causou um mico de ímpar com desastrosa repercussão internacional. Alegando sofrer discriminação em seu oficio de jornalista em comparação com seus colegas alemães, Ismail Erel, redator-chefe da edição européia do jornal turco Sabah,com um alcance de 60 mil leitores na Alemanha, recorreu à maior instância jurídica do país, o Tribunal Constitucional, e obteve sucesso (ver aqui e aqui).
Depois do anúncio da decisão, transbordaram na internet as notícias com declarações de alívio de todos aqueles políticos e ministros que anteriormente poderiam ter evitado o maior escândalo midiático que a Alemanha já viu desde o caso Spiegel, em 1962.
A intenção do Tribunal Superior de Munique não foi somente de alto caráter de ingenuidade, mas também de incapacidade intelectual. Em um processo em que nove dos dez mortos eram imigrantes, é impossível deixar a mídia estrangeira (principalmente a da Turquia) de fora de um tribunal. No caso NSU, todos os órgãos falharam nos quesitos prevenção, vontade política de reação e repressão. O tribunal de Munique só fez ratificar a imensa dificuldade das autoridades alemãs em lidar com o caso “tão desagradável”, o que mostra que a ideologia de extrema-direita não somente se encontra na clandestinidade, mas em órgãos criados para combatê-la.
A comissão parlamentar de inquérito que investigou o NSU comentou positivamente na segunda-feira (15/4) o adiamento do processo: “Esperamos que dessa vez, o processo de credenciamento da imprensa seja justo e tenha o discernimento da necessidade de presença midiática turca no tribunal”.
Veremos outros tantos capítulos da novela midiática concernente ao processo NSU. Não é exagero comparar esse processo com uma comissão da verdade. Todos os aspectos escondidos ao longo dos anos virão à tona, desmascarando uma estrutura questionável, inconfiável, obsoleta.
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Fátima Lacerda é jornalista freelance, formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988