Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Globo aposta em “amor e ódio”

Alguns jornalistas vêm alertando há algum tempo, inclusive neste espaço, sobre os objetivos da Rede Globo em polarizar o campeonato brasileiro entre apenas dois times, num sistema muito parecido ao que acontece na Espanha. Com apenas dois times fortes no Brasil, a emissora passaria a ter cada vez mais audiência na transmissão dos jogos de ambos, numa espécie de relação de amor e ódio que ambos passariam a gerar cada vez mais nos torcedores de outros times, principalmente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro.

Recentemente alguém publicou que quase metade dos telespectadores dos jogos do Corinthians não são corintianos; seriam adversários que assistem aos jogos apenas para “secar” o rival. Pois bem, quanto menor a possibilidade de título do time do coração, maior a frustração do torcedor em relação ao próprio time e maior também a rejeição ao rival “poderoso” mais próximo. Assim, havendo a polarização definitiva entre os dois clubes, com exceção dos torcedores dos mesmos, paulistas “adotariam” o Flamengo e cariocas adotariam o time paulista.

Abrindo um parêntese, até os anos 1990 o time da Rede Globo era o Flamengo. Em suas transmissões nacionais, a emissora sempre priorizou os times cariocas, tanto que as maiores torcidas na região Nordeste são Flamengo e Vasco. A partir dos anos 90 a emissora adotou o time de maior torcida no estado de São Paulo e a torcida deste, que sempre foi regional, passou a aumentar rapidamente nos demais estados e a se aproximar cada vez mais do Flamengo.

“Pelo bem do futebol brasileiro”

Alguns poderão perguntar: “Mas o que Neymar tem a ver com isso?” Tudo! Ele é o principal responsável pelo atraso de pelo menos quatro anos nesse “projeto”, pois mesmo com o declínio do time do Santos FC, e do boicote da emissora ao clube, o Neymar continua sendo cada vez mais popular e querido, principalmente por jovens e crianças. Com isso, ele atrai cada vez mais atenção e torcedores para o clube em que joga e atrapalha os planos da emissora.

Há algum tempo venho pensando em quais seriam os reais motivos da intensa campanha que a imprensa, técnicos e ex-atletas fazem no sentido de convencer o maior craque que surgiu no Brasil nos últimos anos a se transferir para a Europa. Passei a ficar mais intrigado quando a Rede Globo praticamente encampou essa campanha e passou a dar cada vez mais espaço aos defensores da ideia de que, pelo bem do futebol brasileiro, o Neymar deve se mudar para a Europa.

Não faz o menor sentido a “dona” do futebol brasileiro querer que a maior atração do campeonato que ela paga tão caro para exibir saia do Brasil e passe a disputar uma liga nacional europeia qualquer da qual ela, Rede Globo, não detém os direitos de transmissão. Comecei, então, a pensar no que poderia significar, de fato, a expressão “pelo bem do futebol brasileiro”, que é repetida à exaustão pelos profissionais das emissoras do grupo nos vários programas tanto na TV aberta quanto na fechada. Minha conclusão é que, na visão da emissora, o “bem do futebol brasileiro” é ter dois times que venham ser gigantes no cenário mundial, mas o maior ídolo em atividade no país não joga em nenhum dos dois escolhidos e ofusca a ambos desde 2010.

Proposta milionária

Vejamos, em 2009 o Corinthians contratou Ronaldo e “chamou” todos os holofotes para o clube que até então só era conhecido mundialmente pelo título de 2000, no torneio usado pela Fifa como piloto para o Mundial de Clubes que passou a ser patrocinado pela entidade a partir de 2005. Nesse ano, o clube conquistou o Campeonato Paulista, sobre o Santos de Neymar, e a Copa do Brasil que lhe deu a vaga pra a Libertadores de 2010. A Rede Globo tinha enfim motivos de sobra para justificar a super exposição do time paulista, que lutava pelo inédito título da Libertadores, mas para azar da emissora eles foram eliminados pelo Flamengo nas oitavas de final. Enquanto isso, Neymar começava a brilhar e encantar o Brasil e o mundo com um futebol vistoso dentro de campo e um estilo pessoal cada vez mais copiado por jovens de toda parte. O time do Santos FC de 2010 talvez tenha sido o mais badalado desde aquele de Pelé dos anos 60 e Neymar passou a ser o jogador mais disputado por vários grandes clubes do mundo.

Veio 2011 e novamente a Rede Globo fez o que pode para promover a participação de seu time na Copa Libertadores, mas havia um Tolima pela frente e o time sequer disputou a competição. Enquanto isso, apesar do boicote da Globo, Santos FC e Neymar continuaram brilhando no primeiro semestre, conquistando o bicampeonato paulista e o tri da Libertadores. Neymar já havia se transformado num fenômeno e nada mais conseguia ofuscá-lo. [Neste ano, até as quartas de final, a Globo transmitiu apenas três jogos do Santos FC pela TV aberta, e o primeiro jogo do Mundial de Clubes foi transmitido apenas para o estado de São Paulo.]

Na janela do meio de ano surge uma proposta milionária do Chelsea, mas para surpresa de todos, Santos FC e Neymar dizem NÃO! Daí começam as convocações para qualquer jogo caça níqueis da seleção e a perseguição da imprensa, que logo contamina boa parte dos torcedores de outros times.

Transformar os “outros” em coadjuvantes

A expressão “o Neymar precisa ir se desenvolver na Europa” passou a ser quase um mantra, repetido a exaustão por jornalistas e torcedores, como se todos adorassem o garoto e quisessem o melhor para ele. Curiosamente, esses mesmos jornalistas e torcedores não tem essa mesma adoração pelos craques de seus próprios times. Não vemos o mesmo “conselho” para bons jogadores como Paulinho, Bernard, Leandro Damião, Osvaldo e tantos outros. Se o Neymar precisa “se desenvolver”, imaginem o quanto de desenvolvimento precisam esses jogadores médios?

Em 2012 o Santos FC de Neymar e o Corinthians disputam o torneio continental, a Rede Globo transmite “todos” jogos do time da capital e apenas três do Santos, sendo dois na semifinal contra o próprio Corinthians. O boicote da Rede Globo ao Santos FC continua, mas o que realmente me incomoda como desportista é o linchamento público de Neymar pela imprensa dita esportiva, linchamento este que tem seu auge nas Olimpíadas onde a perda de mais um título foi obviamente colocada na conta do jovem craque santista.

Alguns torcedores do Santos FC dizem que o boicote da emissora teria sido “solicitado” pelo alvinegro da capital, que estaria incomodado com o sucesso do time e de seu principal astro. Se é verdade, não sei, mas considerando o sucesso que o garoto faz entre torcedores de todos os times brasileiros, e a quantidade de novos torcedores que ele pode “transferir” ao Santos FC, outros times não devem querer mesmo que o time da baixada tenha muita exposição.

Não interessa à Rede Globo que outros times além de Corinthians e Flamengo tenham grande destaque, pois o objetivo dela é transformá-los, a todos, em simples coadjuvantes. Com Neymar, o Santos FC continuará sendo um time forte dentro de campo, e exemplo de resistência ao colonialismo europeu fora dele. Imaginem outros grandes clubes brasileiros mantendo suas principais revelações, e disputando de igual para igual com os milionários times privilegiados pela emissora? Se as disputas não ficarem polarizadas entre os dois clubes de nada adiantarão os milhões que a emissora despeja nos cofres dos mesmos todos os anos, e ela terá que se render ao mérito esportivo, talvez com audiência um pouco menor, uma vez que muitos deixarão de assistir jogos desses times apenas para “secar”.

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Sandro Campos é analista financeiro, Carapicuíba, SP