Aparentemente, não existe relação direta entre a mineração em Araxá (MG), a gestão bancária de capitais financeiros, o Ministério das Relações Exteriores e a memória fotográfica, musical e literária do Brasil. No entanto, essas áreas estão costuradas há mais de seis décadas pela família Moreira Salles. Responsável por 85% da exploração mundial de nióbio (via CBMM), fundador do Unibanco e sócio do Itaú, a família do embaixador e banqueiro Walter Moreira Salles (1912- 2001) investiu também na criação e manutenção de uma das mais sólidas instituições culturais no país.
Com um acervo monumental de 800 mil imagens, 100 mil fonogramas, 1.200 obras de iconografia e 400 mil cartas e documentos, o Instituto Moreira Salles (IMS) prepara um dos passos mais ambiciosos de sua trajetória: a construção de um museu vertical na avenida Paulista, em São Paulo, entre as ruas Bela Cintra e Consolação. Com inauguração prevista para 2016, o novo espaço foi definido a partir de um concurso que reuniu seis importantes escritórios do país – Arquitetos Associados, Angelo Bucci (Spbr), Marcio Kogan (Studio Mk27), Una, Bernardes&Jacobsen e Andrade Morettin – este último, autor da proposta vencedora.
“O museu é translúcido, envolvido por uma segunda pele, o que providencia a tranquilidade necessária ao uso e, ao mesmo tempo, permite que do exterior se visualizem as silhuetas das entranhas e dos movimentos no interior do prédio”, diz o editor da revista Monolito e um dos sete jurados do concurso, Fernando Serapião.
Exposições maiores
Realizada na fazenda da família, no interior de São Paulo, a eleição durou dois dias seguindo parâmetros dos grandes concursos internacionais. Seguindo uma ideia do concurso do Museum of Modern Art (MoMA), de Nova York, os participantes recebiam uma caixa de acrílico para colocar dentro o que quisessem. Fotomontagens e uma maquete em escala pré-definida eram itens obrigatórios.
Com um térreo elevado a 15 metros, o novo prédio orçado em aproximadamente R$ 30 milhões deve abrigar grandes exposições, bem como mostras de cinema, palestras, cursos e shows de música. Uma biblioteca de fotografia e um café fazem parte do projeto. “O instituto vai mudar de escala”, afirma o superintendente executivo do IMS, Flávio Pinheiro. “Já ocupamos uma casa magnífica no Rio, mas a Gávea virou um bairro retirado, com dificuldades crescentes de acesso. A Paulista é servida por duas linhas de metrô, lugar onde passam milhares de pessoas diariamente.”
Atualmente são três as unidades da instituição: um chalé do século 19 em Poços de Caldas (MG), o primeiro centro cultural do IMS, que completa 20 anos em agosto; a antiga mansão da família na zona sul do Rio e uma galeria em Higienópolis, em São Paulo, capaz de abrigar apenas pequenas mostras. Por enquanto, as exposições maiores curadas pelo IMS vêm à cidade ocupando outros espaços de exposição, como a Pinacoteca do Estado, Fiesp ou Faap. É nesse esquema, por exemplo, que mostras do sul-africano William Kentridge ou do francês Jacques Henri Lartigue (1894-1986) desembarcaram por aqui recentemente.
Sem Lei Rouanet ou incentivo fiscal
Foi determinante para a história da instituição uma decisão tomada pelo seu conselho diretorial em 1999: ter na fotografia sua área de excelência. Hoje, o IMS é dono de uma das maiores coleções privadas do Brasil, com 30 acervos de nomes como Marc Ferrez (1843-1923), Hildegard Rosenthal (1913-1990) ou Alice Brill. “A tarefa é divulgar tudo o que tem. O instituto não quer praticar um colecionismo em que ele fique sentado em cima de tesouros”, diz Pinheiro. As discotecas dos pesquisadores José Ramos Tinhorão e Humberto Franceschi, o acervo de Pixinguinha (1897- 973) e Baden Powell (1937-2000), e as bibliotecas de escritores como Ana Cristina Cesar (1952-1983), Rachel de Queiroz (1910-2003), Otto Lara Resende (1922-1992), Décio de Almeida Prado (1917-2000) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), entre outros, são alguns dos ditos “tesouros” da coleção nas áreas de literatura e música. Comprados, doados ou guardados em comodato, eles compõem um patrimônio difícil de mensurar.
A fim de inserir-se nos debates culturais contemporâneos, a instituição criou duas publicações regulares: Zum, sobre fotografia (semestral) e Serrote, de ensaios e ideias (quadrimestral), além de um blog (www.blogdoims.com.br), uma webrádio (ims.uol.com.br/radiobatuta) e uma bolsa de incentivo à fotografia, lançada recentemente. O plano daqui para frente, no entanto, é investir mais a fundo em pesquisa. “Temos feito contato com universidades brasileiras e estrangeiras para costurar convênios”, afirma Pinheiro.
A instituição gaba-se por não fazer uso de dinheiro público. “Os contribuintes aqui são quatro”, diz o superintendente. Diferentemente de outros organismos vinculados a bancos como o Centro Cultural Banco do Brasil ou o Itaú Cultural, tudo é feito apenas com uma dotação da família, sem Lei Rouanet ou outro incentivo fiscal.
Investimento em nióbio
Hoje os irmãos Moreira Salles – Fernando, Pedro, João e Walter – detêm uma fortuna estimada em US$ 27 bilhões, segundo a Bloomberg. Entender a história da instituição, entretanto, passa por conhecer a figura do pai e fundador, “doutor Walter”. Personalidade marcante para a política, economia e vida cultural do país, Walter Moreira Salles foi quatro vezes embaixador em Washington e ajudou a renegociar a dívida externa brasileira. Próximo dos governos de Getúlio Vargas (1882-1954), Juscelino Kubitschek (1902-1976) e Jânio Quadros (1917-1992), Salles atuou ainda como ministro da Fazenda do governo João Goulart (1919-1976), sem deixar de lado o banco e outros investimentos.
Em sua casa na Gávea, cercada pelo jardim de Burle Marx, o diplomata recebia convidados internacionais, como Henry Ford II (1917-1987), Nelson Rockefeller (1908-1979), Aristóteles Onassis (1906-1975), Greta Garbo (1905-1990) e Mick Jagger, para citar alguns. Um pouco da atmosfera da casa foi retratada pelo documentário Santiago (2007), de João Moreira Salles, centrado na figura do mordomo da família. O instituto iniciou no ano passado o processo de digitalização e organização dos arquivos de seu criador. “É uma tarefa para anos”, afirma o historiador Jorge Caldeira, que coordena o processo. Os projetos envolvendo os documentos ainda não foram definidos ou divulgados.
Dentre as muitas histórias guardadas, está a de que o investimento em nióbio foi sugestão de um almirante da marinha americana, quando os usos possíveis do metal ainda estavam sendo testados em laboratório. Hoje, o nióbio em pó é usado em um décimo da produção de aço mundial, para automóveis, oleodutos e turbinas de avião. Anos depois, a empreitada do almirante ajudaria a financiar a memória cultural brasileira e um edifício pós-moderno na avenida Paulista – reviravoltas do mundo.
Site: www.ims.uol.com.br
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Gabriela Longman, para o Valor Econômico