Solene no posto que, sem exageros, é tão visado quanto o do mais alto mandatário da República, o técnico da seleção brasileira acabara de ser anunciado pelo repórter de rádio como “professor”. Tão logo chegou à sala, começou a entrevista coletiva: sua fala, entrecortada por pausas, como que a pensar no que dizer aos jornalistas que faziam perguntas imprevistas, exprimia pouca fluidez de raciocínio, com períodos longos sem concatenação e muitos erros gramaticais. Visivelmente nervoso, o “professor”, em vários momentos, transformou um palavrão de duas sílabas em bengala na qual apoiava a exposição dos argumentos. Enquanto dirigiu a equipe brasileira, foi muito criticado. Mesmo assim, nunca deixou de ser “professor” – ainda que fosse acusado de inépcia, de incompetência, de nada entender de futebol. Ou seja: de não ter ensinado aos seus alunos o que fazer com a bola.
Não são todos os treinadores que, alçados à condição de “professores”, comportam-se como o ex-treinador irritadiço. Ele tornou mais longa, é verdade, a distância entre a pompa da classificação professoral e o que se espera da atitude de quem a detém. Se esse fosse o único problema, bastaria que alguma boa alma lhe desse alguma eficaz lição de bons modos, ou que a contradição fosse maciçamente apontada como ética e moralmente impeditiva para o exercício da atividade. Entretanto, a questão é outra, bem mais complexa do que parece à primeira vista e audição: a transformação dos treinadores em “professores”.
Paizão camarada
Pródigo em criar neologismos e gírias devido à presença em todas as camadas da sociedade brasileira e ao pathos lúdico-catártico, o futebol enxerga no espelho linguístico do jornalismo esportivo mais do que sua mimética reprodução. Jornalistas esportivos de todos os meios têm parcela de autoria no vernáculo do futebol que se escreve dia a dia, pois a língua é viva e em constante mutação. Uma de suas invenções mais recentes, perceptível em algumas emissoras de rádio e televisão, é esta de enxergar, na função de treinar equipes de futebol e de outros esportes, função similar à de professor, e classificar os treinadores com esta palavra – que não é nem se torna uma gíria, mas tem sua abrangência semântica ampliada.
Etimologia é, na ciência linguística, a área que estuda a origem histórica das palavras e de seus significados. Palavras surgem de uma raiz (ou radical) que encerra significado literal; mas o contexto histórico-cultural as modifica, associa-as a universos distantes, fazendo-as exprimir outros sentidos. (Breve e necessária digressão: “Raiz” ou “radical” significa a parte da palavra que lhe dá sentido geral, sendo invariável; não à toa, serve hoje à taxionomia desta época de atentados e demonstrações de intolerância. Uma pessoa radical, seja na esfera religiosa, seja na político-ideológica ou em qualquer outra, é alguém que enxerga o mundo como se fora composto de uma raiz invariável que está imune às transformações temporais: assim, um radical religioso sempre interpreta, de modo unicamente literal, o livro sagrado de sua religião, assim como o radical político não abre mão dos conceitos ideológicos que ele aprendeu em algum momento da vida. O radical não entende, nem quer entender, a diferença entre linguagem figurada e linguagem literal).
Esse processo de mudança dos sentidos da palavra é absolutamente normal em todas as línguas. Como se trata de um fato social, permite a compreensão dos valores de uma sociedade por meio das palavras que seus membros utilizam e dos significados que lhes são conferidos. Que sociedade é esta na qual treinador de futebol é chamado de professor?
Na etimologia, “professor” vem do Latim profiteri, formada pelo radical fateri, que significa professar, confessar; e pelo sufixo pro, com o sentido de “na frente de todos”. Professor é aquele que, tendo à frente um número de pessoas, professa-lhes seu saber numa determinada área. Sendo o professor revestido da nobre missão civilizatória de educar, que é abrir a cabeça para o mundo, preparar indivíduos para a vida social (Origem latina de “educação”: prefixo ex “fora” e raiz ducere “conduzir”), tornou-se mais do que o simples reprodutor mecânico de conhecimento.
Em sentido literal, portanto, o sentido de professor é diferente do de treinador (derivado do latim trahere: puxar, arrastar). Treinamento, objeto de ação do treinador, é a aquisição de conhecimentos técnicos de uma determinada atividade ou profissão que visam a torná-la mais produtiva. É uma instrumentalização do trabalho humano com o objetivo de atingir um fim muito específico. Quando uma empresa realiza treinamento (coaching, no típico subdesenvolvimento linguístico brasileiro de substituir palavras do nosso idioma por equivalentes estrangeiros) de seus funcionários, é para que elas rendam mais, e a empresa tenha mais lucratividade, o que é normal e legítimo. No caso do esporte, o treinamento é planejado para fazer os atletas renderem mais técnica e fisicamente, com o que a equipe terá mais chances de vitórias, de conquistar títulos, de revelar grandes jogadores, de criar ídolos – o fim último das grandes equipes de futebol e de outros esportes. No Brasil os treinadores sabem bem disto: quando as equipes que dirigem perdem muito ou não conquistam títulos, a porta de saída é a serventia dos clubes.
Embora possa haver, nos treinamentos, práticas didáticas que se observam no trabalho do professor e que, neles, haja a transmissão de conhecimento; e embora a educação, por outro lado, comporte treinamento, esta, como se pode compreender de seu sentido, é algo muito mais amplo, não se limita a um objetivo último que não a própria educação. O treinador de futebol pode ser camarada, conselheiro, “paizão” dos jogadores que, no Brasil, são oriundos das camadas mais baixas da sociedade, e por esse motivo apresentam problemas educacionais e financeiros; mas isso não o transforma em professor, senão num sujeito que vai além do que se espera dele, pelo que merece elogios.
Status reivindicado
Por que, então, chamar treinadores de futebol de professores? Porque a importância que o universo futebolístico passou a dar a eles os elevou de categoria: tornaram-se mais importantes do que os jogadores, os presidentes de clubes, a torcida. Sua palavra passou a representar o ápice do conhecimento esportivo, da psicologia do esporte, da administração do esporte. Daí que a palavra treinador (ou técnico) tenha, para eles, um significado menor: serem chamados de “professores” confere-lhes um status de sabedoria que inferioriza aqueles com quem travam contato. Fernando Calazans, em sua coluna no jornal O Globo, diagnosticou este quadro há alguns anos. Mas não foi suficiente para convencer a imprensa esportiva desta inadequação vocabular.
É irônico que “professor” tenha adquirido este significado exatamente no momento em que, no Brasil, nossas seculares carências educacionais sejam tão visíveis em testes internacionais e nacionais. Se o homem que dirige uma equipe de futebol transforma-se, na função, num respeitado professor, o gerente ou o diretor da empresa também podem reivindicar o status. E, quando todos podem se tornar professores, ninguém é professor. Ao invés de abrimos nossa cabeça para o mundo, estaremos, na verdade, fechando-a. Mais do que já parece estar.
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Bruno Filippo é jornalista e sociólogo