O jornalista e escritor paraibano Moacir Japiassu tem a melhor coleção brasileira de patacoadas cometidas por colegas de ofício: “Matou a mãe sem justa causa”; “Agricultor morre após ser linchado”; “Se condenado, a pena total será de prisão perpétua mais 150 anos”; “O Brasil fica parado vendo Cuba lançar [sobre jogo de basquete]”; “Itamar planta árvore e mata muda”; “Zico volta a jogar bola e quebra o pau”… Burrices obradas em Itabira e comentadas nO TREM também alimentam o arquivo do ombudsman informal, como esta informação dada por radialista falastrão: “O terremoto foi feio. Oito graus na escala Hitler”.
Partiu do antropólogo Luiz Mott a mais contundente reação dos citados por Moacir Japiassu em sua ótima coluna, que na revista Imprensa se intitulava “Perdão, Leitores” e virou “Jornal da ImprenÇa”, hoje abrigada no portal Comunique-se: “Na qualidade de presidente do Grupo Gay da Bahia, agradeço as repetidas citações de meu nome em sua coluna, prova que habito seu imaginário. Considerei, no entretanto, de muito mau gosto e preconceituosa a gracinha que fez sobre a cura da próstata através do aparelho de telefone. Solicito não colocar em meu nome, nem no meu cu, suas próprias fantasias ou experiências sexuais”.
Com meio século de jornalismo, 70 de idade e passagens por algumas das mais importantes redações do país – Última Hora, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, IstoÉ, Veja… –, o ex-editor-chefe do programa Fantástico, da TV Globo, é bem mais do que o melhor comentarista brasileiro de sandices jornalísticas. Escritor que vale ser lido, tem nove livros publicados, nos quais ataca de romancista, cronista, contista e até de receitador de comidas nordestinas.
A seguir, Moacir Japiassu responde a perguntas sobre, entre outros assuntos, Brasil, jornalismo, TV, Carlos Drummond de Andrade, claro, e dá a receita para não se morrer de Brasil: humor. “Precisamos achar, na desgraça que nos assola, um motivo para rir.”
Digamos que alguém – pode ser lá da Paraíba – inventou uma máquina por meio da qual é possível falar e ser ouvido por todos os brasileiros, simultaneamente. Se pudesse falar uma verdade urgente nessa estrovenga, o que todos escutaríamos?
Moacir Japiassu– A grande máquina inventada no sertão nordestino foi o “pavão misterioso”, o qual, talvez por voar muito baixo, permitia aos viajantes a observação detalhada do que se passava, e ainda se passa, aqui neste terreno baldio. Sempre foi possível enxergar as mazelas deste país-do-faz-de-conta, onde jamais, em tempo algum, a honestidade germinou, apesar de “em se plantando tudo dá”. A verdade é que viver no “país de todos” exige, principalmente, espírito de renúncia, pois tudo está errado no Brasil. Lamento informar que, aos 70 anos de idade e 51 de jornalismo, assalta-me somente a certeza de que ainda estamos a sobrevoar a caatinga numa altitude em que é possível arrastar a bunda nos espinhos do mandacaru, mesmo a bordo desse misterioso pavão nascido da criatividade sertaneja. Até o futebol anda mal. Hoje ocupamos o 19º lugar no ranking da Fifa; e, para não deixar barato, lembro que a tão falada transposição do rio São Francisco está mais atrasada do que a construção dos estádios da Copa do Mundo. Diante de tal e salgalhado cenário, como é possível escolher apenas uma entre as desgraças que infelicitam a nação?
“O maior problema da humanidade não é nenhuma doença transmissível; é a burrice”. A sentença é do senhor. Por favor, fale mais sobre tão importante assunto.
M.J.– Eu me referia à Aids, apontada como a maior desgraça da humanidade, a qual se espalha, não pela ignorância dos grupos de risco, como insistem em dizer, mas pela promiscuidade burra dos drogados. Então, não é a doença, mas a burrice, que devemos ter em mente quando falamos de tal assunto, é claro. Nossos bisavós diziam que a preguiça é a mãe de todos os males, porém, isso não é verdade. Basta lembrar que José Lins do Rego, meu primo mais ou menos distante, também sou Lins, chegou de volta à Paraíba e ao engenho do avô, depois de se formar no Rio de Janeiro, e quando todos esperavam pelo menos um vigoroso discurso daquele que se revelaria um dos mais talentosos filhos da terra, ele, para desespero da família, pediu que alguém estendesse a rede na varanda da casa grande e se deitou. Zélins era muito preguiçoso, mas, inteligente, produziu importante obra literária. O episódio, como tantos outros, ilustra a assertiva segundo a qual não é propriamente a preguiça a mãe de todos os males, porém, a burrice. Já disse e escrevi que a ignorância não sabe enquanto a burrice não entende. Por exemplo, o palhaço-deputado Tiririca, mesmo analfabeto de pai e mãe, pode até continuar nessa dolorosa situação e mesmo assim brilhar no picadeiro desse outro circo que é o Legislativo, enquanto políticos ditos de pedigree nunca aprenderão o caminho das pedras, por não entenderem o que se passa à sua volta. Está aí o noticiário que não nos deixa mentir. A propósito, recordo episódio ocorrido na redação do Jornal da Tarde, de São Paulo, quando um candidato a foca recebeu orientação do editor para me entregar a matéria recém-escrita e que abrigava a seguinte frase, capaz de ferir os olhos do leitor: “A encomenda pesou apenas 200 gramas…” Disse-lhe que, no caso, grama é masculino. O rapaz levou as laudas, voltou com a correção: “A encomenda pesou apenas 200 gramos…”
Vivemos uma época de superabundância de informação e também da enganação travestida de informação. Qual a compreensão do senhor sobre esse momento?
M.J.– Na busca por bons assuntos, os jornalistas de verdade sempre puseram as barbas de molho e um pulguedo atrás das orelhas, por causa do perigo de se acreditar cegamente na “informação” e publicar aquela barriga [notícia falsa], que provoca deboche geral e até demissão. Na era da internet, a enganação está sempre e sempre prestes a desabar sobre os navegantes, principalmente os de primeira viagem. É necessário temer o excesso de dados a respeito de todo e qualquer assunto, porque nas equações que aparecem no dia a dia do jornalismo, informação mais informação é igual a nada. Todavia, é preciso dizer, a bem da verdade, que muito já se escreveu de besteira na imprensa deste país de todos, bem antes de os jornais serem informatizados. Os passageiros dO TREM, principalmente os mais velhos, se lembram do “boimate” da Veja, na edição de 27 de abril de 1983. A revista caiu no conto do primeiro de abril, perpetrado pela New Science, segundo a qual cientistas haviam descoberto um espetacular e super-nutritivo fruto a partir da fusão do boi com o tomate… A Veja acreditou na brincadeira e apresentou aos leitores “uma nova fronteira científica”. O Estadão descobriu a origem do “furo” e o sarcasmo tomou conta das redações pelo Brasil afora. A revista reconheceu o erro e se desculpou, mas somente dois meses depois.
Por favor, fale um pouco sobre a importância do jornalismo para um país, um estado, uma cidade, se exercido com seriedade.
M.J.– Mesmo sem nenhuma seriedade o jornalismo é importante, pois nos leva a pensar, a refletir, a desconfiar. Nos últimos anos, o que mais me preocupou, e ainda preocupa, é observar que a imprensa ainda não descobriu esta obviedade: seu papel não é só o de informar, mas também ensinar. A língua portuguesa é massacrada diariamente na mídia sem que se tome a mais mínima providência. Na TV, apresentadores e repórteres ignoram as sutilezas do idioma e, de vez em quando, inventam mais um disso a que se dá o nome de idiotismo. Por exemplo, há algum tempo ocorre verdadeiro tsunami da expressão “por conta” como se fosse substituta de “por causa”. As pessoas de bom gosto não aguentam mais. Posso avaliar, por conta, ou melhor, por causa do grande número de mensagens que minha modesta coluninha no portal Comunique-se recebe diariamente. “Por conta” disso, “por conta” daquilo… e os jornalistas seguem a mostrar aos leitores, ouvintes e telespectadores o mais escorregadio caminho das pedras. Além do mais, ainda insistem que a pronúncia da palavra é “gratuíto”; e não existe fluido, mas “fluído”. Os linguistas oficiais ainda têm o descaramento de dizer que está tudo bem, o idioma é vivo e tanto faz dizer-se “nóis fumos” e “a gente podemos”, talvez por não terem entendido direito os versos de Manuel Bandeira, que em “Evocação do Recife” se referiu à “língua certa do povo”. A todo momento confundem “chance” com “risco”. Está certo que não se “corre o risco” de ficar milionário, mas é de doer um repórter nos ensinar que são grandes as “chances” de um meteoro nos mandar pros quintos dos infernos. Ninguém exige que o jornalismo seja exercido somente por grandes mestres ou cientistas de escol, principalmente porque as faculdades estão cobertas de ignorância e dali saem por ano rebanhos de “profissionais” incapazes de lutar por um emprego razoável. É grande, imenso, o fosso que separa o diploma do mercado de trabalho. E vai piorar, garantem os mais pessimistas.
Qual a história mais saborosa que presenciou numa redação de jornal?
M.J.– Lembro-me de certa manhã, no edifício da Bloch Editores, no Rio de Janeiro, quando entrei no elevador e encontrei os amigos do peito Raymundo Magalhães Júnior e Lêdo Ivo, ambos redatores da Manchete, que falavam de uma vaga recém-aberta na Academia Brasileira de Letras. Perguntei ao poeta se ele não iria se candidatar e Lêdo, com aquela ruidosa gargalhada, respondeu: “Só me candidato quando estiver disponível a cadeira do Raymundo…” Outro episódio aconteceu ainda no prédio velho dos Bloch, na rua Frei Caneca. O repórter esportivo Nei Bianchi escrevia matéria para Fatos&Fotos, na mesinha junto à porta de entrada da redação, quando Oscar Bloch enfiou a cabeça e, aos gritos, como sempre se expressava aquela sesquipedal ignorância, lançou: “Porra, Nei, que relógio maravilhoso! Quem é que te deu? Avisa que a matéria só vai sair se eu também ganhar o meu!” Ninguém se escandalizava ao escutar uma coisa dessas, pois a empresa mantinha estendida, logo na entrada do prédio, uma faixa enorme na qual se lia: “A ética é o faturamento”.
O senhor tem esperança de que o Brasil se torne um país de leitores?
M.J.– Infelizmente, não. A classe média tradicional sempre comprou livros, mas só para enfeitar estantes; ler é outra coisa, é um hábito, e deste “mal” ninguém morre ou morrerá no Brasil. E para meu espanto, de vez em quando aparece um sujeito para dizer esta barbaridade: “Leio tudo o que me cai nas mãos”. Ora, o elemento que lê tudo o que lhe cai às mãos não chega a ser um intelectual, mas uma quadradíssima besta. A chamada boa leitura começa pela escolha do livro, pelas informações que trazemos da escola, pelo estudo dos clássicos. Ler, já se disse, é a verdadeira atitude intelectual, muito mais importante do que escrever. E o cara perde seu tempo com o Almanaque Capivarol? No Brasil não se lê livros, nem jornais ou revistas; dá-se uma folheada naquilo que oferecem as salas de espera de consultórios, e pronto. Trabalhei durante algum tempo na Denison Propaganda e, perplexo, fiquei sabendo que compram a Veja mas não a leem. Certa vez, a Denison encomendou ampla pesquisa e descobriu o seguinte absurdo: a maioria dos consultados adorou uma reportagem da Veja que, na verdade, fora publicada na concorrente IstoÉ… E ainda por desatenção, que é a antessala da burrice, sempre atribuem à Globo o que viram, mas não entenderam, noutros canais. Agora me diga: um cretino que boia dessa forma em meio à palavra escrita/televisada pode se transformar num voraz leitor de Machado e Eça?
Por falar em grandes, impossível para este jornal não falar dele. Qual sua opinião sobre a obra de Carlos Drummond de Andrade: do que mais gosta, do que não gosta?
M.J.– A poesia é a minha paixão, talvez pelo fato de não ter o menor traquejo para velejar nesses oceanos de maravilhas. Conheci Drummond ainda eu menino, por intermédio de meu irmão, Celso Japiassu, jornalista, publicitário e também poeta de escorreito verso. Tive a ventura de ler toda a obra do itabirano, prosa e poesia. Não trocaria uma palavra, uma vírgula sequer no que ele escreveu, e olhe que sou reescrevedor de formação, passei mais de meio século às voltas com textos alheios. Drummond é genial ao tropeçar numa simples pedra no meio do caminho e quando num passeio, a palmilhar vagamente uma estrada de Minas, também pedregosa, observa a máquina do mundo, esta que se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia…
Tantos gravíssimos casos de roubalheira e impunidade na política brasileira têm arranhado a nossa democracia, animando saudosos da ditadura a defendê-la abertamente. Como resume aos mais jovens o que foi o período dos militares no poder?
M.J.– A saudade da ditadura é sentimento dos que não viveram aquele período, ou, então, integravam o poder. É que ninguém deveria sentir falta da estupidez generalizada, nem mesmo os generais. Aquilo tudo foi um equívoco e quando examinamos o período vemos que o golpe militar se perdeu na origem, com seus líderes a imaginar, certamente por influência da Guerra Fria, que o governo João Goulart estava pronto para entregar o Brasil aos pelegos do sindicalismo, à descompostura de soldados, cabos, sargentos que nunca souberam o que é a política, a ideologia. Era tamanha a besteira em curso que um dos grandes heróis da época era o inesquecível Cabo Anselmo, falso esquerdista a serviço do que havia de pior no Brasil de então. Nos nossos dias, há quem se perca em novenas ao Menino Jesus de Praga para que voltem os militares, numa histeria absurda, porém até compreensível; afinal, temos no poder a corja mais perigosa de nossa história, a qual se malocou nas hostes do PT e acaba de festejar “os dez primeiros anos” da tomada do país. Assistimos hoje ao império do mais assanhado analfabetismo, apoiado pelo radicalismo de verdadeiros animais cujo conceito de socialismo é a terra arrasada. Há pouco acompanhamos a eleição na Venezuela e o “herdeiro” de Hugo Chávez [Nicolás Maduro] ganhou por ínfima diferença de votos, o que pode ocorrer aqui, porque o povo também se cansa das safadezas perpetradas em seu nome. Não precisamos da volta dos militares; basta-nos uma boa e honesta liderança de oposição a tudo isso que aí está.
Às vezes, uma pergunta bobinha suscita ótima resposta. Se pudesse dar um presente ao Brasil, qual seria?
M.J.– Creio que não terá uma ótima resposta, porque não imagino presente algum para o Brasil. Nem mesmo a Copa do Mundo me encanta, e olhe que sou apaixonado por futebol e fui, durante uma boa eternidade, cronista esportivo de carteirinha e tudo. Fui até convidado para a partida que reinaugurou o Mineirão. Nem sei se vou torcer pela Seleção Brasileira. Desde 1950, quando escutei os jogos em companhia de meu pai, jamais pensei em dar as costas para o nosso time. Como jornalista esportivo, sempre botei a seleção lá no alto, pesquisei a fundo nossa história pelos campos afora e deixei escritas páginas e páginas de uma paixão documentada, se é que se documentam essas paixões.
O senhor é crítico contundente dos governos petistas. Não vê nada de bom nas gestões de Lula da Silva e Dilma Rousseff? Há um argumento de que nas administrações petistas a miséria foi reduzida.
M.J.– O amigo já me chamou de senhor várias vezes neste bate-papo; não me chame de senhor, ó Marcos Caldeira. Um jornalista é sempre “você”, é “tu” para os gaúchos, e pronto. Não me sinto senhor de nada ou ninguém. Olhe, neste assunto eu realmente não vejo nada de bom no petismo, por uma simples razão: quando a gente pesquisa o nazismo, mas pesquisa seriamente, vê que Hitler fez muita coisa boa na Alemanha. Não seria um ídolo se fizesse apenas discursos, né mesmo? Todavia, o mundo e o povo alemão em particular pagaram um preço excessivo pela megalomania daquela canalha, e, guardadas as devidas proporções, não consigo enxergar o petismo sem me lembrar do nazismo. Para mim, é tudo igual; mudou o cenário, a época, mas os fundamentos de um são os fundamentos do outro. E não acredito que a miséria tenha sido reduzida; o sertão, o meu sertão nordestino, está tão miserável como sempre esteve, basta acompanhar as reportagens da TV e ler as matérias dos jornais. É muito fácil um governo safado manipular as pesquisas, mas nós não somos tão burros ou mal-informados para crer nas belezas inventadas a partir do comportamento acanalhado dos líderes petistas.
Você – sim, você – disse que seus livros não vendem. A culpa é sua ou dos leitores?
M.J.– Deve ser minha, porque sou um profissional desconhecido, e os livros até que não são ruins. Críticos e resenhistas que deles se ocuparam foram extremamente generosos comigo. Jô Soares me convidou para uma entrevista no programa dele, o que, em tese, pode ajudar a vender qualquer coisa. Porém, a verdade é que não vendi nada. O Rascunho, que é o mais importante jornal literário do Brasil, editado em Curitiba, achou de botar na capa o meu romance Concerto Para Paixão e Desatino. Grande honra, reconheço, mas também não ajudou nas vendas. Para consolar o romancista, um amigo me disse: “Japi, isso é porque você só escreve; alguém do ramo é que precisa vender…”
O que está perdendo uma pessoa que ainda não leu seus livros?
M.J.– Não sei se perde alguma coisa, honestamente não sei. Sou, e tenho orgulho disso, um bom contador de histórias. Acho difícil alguém habituado a ler atirar na fogueira algum dos meus livros. Ou todos. Eles oferecem boa leitura, digo sem nenhuma arrogância. Agora, atrair os leitores para uma visita àquelas páginas são “outros quinhentos”, como se dizia antigamente.
Você tem um texto muito saboroso, bem-humorado. Por que não escreve mais para jornal?
M.J.– Agradeço o elogio, mas, para início de conversa, informo que ninguém me convidou. E, acredite, a idade e a vinda para Cunha (SP) acabaram me transformando num ermitão. Também imagino que minha coluna, aquela que aponta os tropeços da mídia e hoje se intitula “Jornal da ImprenÇa”, tenha contribuído para meu isolamento. A coluna apareceu na revista Imprensa, em 1987, com o título “Perdão, Leitores”, e a partir de 2002 abriga-se no portal Comunique-se. Fiz e faço muitos, digamos, adversários ao apresentar, mesmo com bom humor, as besteiras que a mídia publica. Os jornalistas são muito cheios de si, consideram-se pessoas importantíssimas. E não falo só dos que têm experiência, pois os focas já começam a morder desde cedo, como filhotes de jacaré. Essa última frase me lembrou um episódio ocorrido no Jornal da Tarde, no final dos anos 1970. Deram-me um longo texto para copidescar, mas depois de ler algumas laudas concluí que era impossível aproveitar uma frase sequer. Então, botei papel na velha Remington e escrevi tudo de novo. No dia seguinte, o autor, o responsável pelo trabalho original, aproximou-se do editor e perguntou, como um Hemingway desrespeitado: “Quem mexeu no meu texto?” O editor apontou para mim, sentado a poucos passos daquele epicentro, e o rapaz se achegou, furioso: “Foi você quem mexeu no meu texto?” Olhei calmamente para cima, porque o injuriado era bem alto, e respondi com toda a calma que pude reunir: “E quem lhe disse que você tem texto?” Ele sentou-se na cadeira à minha frente, e, lívido, escutou as ponderações de alguém que já vivera alguns anos em várias redações. Hoje, ao relembrar o episódio, confesso que não sei se o candidato a jornalista fez carreira. Todavia, era bastante jovem para escolher outros caminhos.
Por que os jornalistas novos, em geral, escrevem tão mal?
M.J.– Porque nunca leram os bons escritores, os mestres do idioma. Qualquer redator precisa ter referências para depois conseguir criar um estilo pessoal. Mas como não leram nem os mestres nem ninguém, se perdem facilmente. O jornalista ou o candidato a escritor precisa ler. Obrigatoriamente. É necessário dormir com Machado e acordar com Eça. Como construir uma boa frase se você não tem intimidade com os melhores poetas? Está nos versos toda a musicalidade da língua. Para vencer, é ler ou ler, diz o ditado que acabo de inventar…
Qual foi o maior aborrecimento que teve por expor erros de jornalistas?
M.J.– Não digo que tive aborrecimentos porque meu bom humor não sofreu desgastes pela vida afora. Quando transcrevo um escorregão do colega, divirto-me a bandeiras despregadas ou à tripa-forra, como nos tempos de Emílio de Menezes e Paula Ney. Os outros podem se aborrecer, e se aborrecem, mas eu, não, pois não faço mal a ninguém e as pessoas que escrevem devem ser humildes para reconhecer quando uma crítica procede, não é verdade? Aliás, essa minha, digamos, preocupação com o erro alheio começou muito antes da coluna. No Jornal da Tarde, como em tantas outras redações, o pessoal colava na parede algumas folhas de cortiça e todos contribuíam com o “Jornal Mural”. Certa vez, numa crônica para o caderno de Variedades, na qual recomendou as melhores obras para serem lidas ao pé da lareira, pois era rigoroso o inverno paulistano, um veterano colunista iniciou assim o seu texto inesquecível: “O hábito de ler é tão antigo quanto o inverno”. Eu li, peguei a caneta e escrevi embaixo: “Não é verdade; o inverno é milhões de anos mais antigo”. Ganhei, ali, um inimigo para o resto da vida. A partir daquele dia, o cronista passou a me olhar com raiva e nojo.
Conte, por gentileza, um pouco mais sobre sua paixão pela literatura.
M.J.– Descobri a literatura ainda menino, por intermédio de meu irmão, Celso Japiassu, citado acima como grande poeta, e é um grande poeta. Três anos mais velho do que eu, e isso constitui enorme diferença quando somos jovens, ele participava daqueles movimentos literários da João Pessoa dos anos 1950 e eu, curioso, estava sempre por perto, disposto a aprender. Em 1957, estávamos em Belo Horizonte, porque meu pai, funcionário público, fora transferido. Dei sorte de estudar no já citado Colégio Marconi, onde conheci um rapaz chamado Getúlio Barros, ex-seminarista e pessoa de surpreendente cultura. Sabia tudo. Sabia mais do que o gênio José Guilherme Merquior. Professor de português, conhecia profundamente o latim e o grego e toda a melhor literatura do mundo. Isso, com 19, 20 anos. Getúlio e eu ficamos amigos e essa amizade me abriu definitivamente os olhos para a literatura. Foi ele quem me falou de Os Thibault, de Roger Martin du Gard, romance que mudou minha vida. Juntos, líamos e estudávamos na biblioteca pública de Belo Horizonte. Foram poucos, mas fantásticos anos de uma juventude ávida por conhecimento. Nos separamos quando deixei BH em meados de 1963, mas nos reencontramos três anos depois, no Rio; eu trabalhava como redator do Jornal do Brasil e ele, agora jornalista, já era um dos melhores repórteres da revista Manchete. Tudo é mais fácil para quem é inteligente e culto… Todavia, infelizmente não tivemos tempo de reatar a amizade prejudicada pela distância: em 1966, em viagem a Ouro Preto, o carro se desgovernou na estrada, capotou e Getúlio Barros morreu, aos 26 anos. Dediquei a ele o meu primeiro romance, A Santa do Cabaré.
Esta pergunta vem de Tião Lampranha, jogador de sinuca no Bar do Tatado, em Itabira: “Moacir, você foi também jornalista de TV, editou o Fantástico. Por que a TV aberta brasileira é tão ruim: novelas imbecis, programas dominicais péssimos, música chinfrim, Big Brother, humorísticos idiotas como Zorra Total…?”
M.J.– A TV já foi ruim de imagem e razoavelmente boa de conteúdo; hoje, é o contrário, porque a Rede Globo, principalmente esta, que é a líder, escolheu a mediocridade como bola da vez. A “TV popular” rende muito mais do que qualquer elucubração intelectual num país de analfabetos, é líquido, certo, claro. E a TV – refiro-me à TV aberta –, ao optar pela pobreza, meteu-se num caminho aparentemente sem volta. Resta-nos gastar as economias para ver alguns bons programas e filmes da TV paga. Ainda bem! Marcos, por favor, diga ao seu amigo que joga no Bar do Tatado que eu não jogo sinuca, mas sou admirador dos grandes mestres. Eu era muito amigo do escritor e sinuqueiro João Antonio, outro que morreu muito cedo, e, juntos, acompanhávamos nos mais tradicionais salões do Rio as tacadas de Boca Murcha, dito O Maravilhoso, mais Carne Frita, Lincoln, Manuel das Couves, Rui Chapéu e o grande Praça.
Na redação dO TREM, há um jornalista de 21 anos que deseja ser bom cronista. Algum conselho para o moço?
M.J.– A resposta já está acima, quando falo das leituras que o jornalista deve incluir no seu dia a dia. É até ocioso que eu aconselhe o jovem de 21 anos a ler as páginas que Rubem Braga nos deixou. Há, porém, ótimos cronistas em atividade, os quais seguem os passos do Sabiá da Crônica. Leio diariamente o craque Eduardo Almeida Reis, que escreve para o Estado de Minas e o Correio Braziliense; é cronista divertidíssimo, que levou para os dois jornais a verve de seus excelentes livros. Eduardo é capaz de escrever duas crônicas todos os dias, sem se repetir nem deixar a peteca cair. Devo também citar Ignácio de Loyola Brandão, Humberto Werneck, João Ubaldo e Sérgio Augusto, embora este deva ser apreciado ainda como ensaísta de alto nível. Sérgio é o mais brilhante dos jornalistas culturais do Brasil. É preciso ler esses autores, sem esquecer os escritores clássicos e também cronistas. Recorde-se que Eça e Machado também foram excelentes cronistas.
O bom humor está sempre presente nos seus textos que já li. É possível aguentar o Brasil sem bom humor?
M.J.– É impossível! Relembro uma charge do Ziraldo durante a ditadura: mostra um sujeito de pé, com as duas mãos na parede e enorme faca enfiada nas costas. A legenda diz: “Só dói quando eu rio…” É um instante bem-humorado deste país dominado pela burrice de uns e esperteza de outros; um país no qual se mente em todos os sentidos, um país sem-vergonha. Se você ficar pensando nessas coisas o tempo todo, você adoece e morre. Precisamos encontrar, na desgraça que nos assola, um motivo para rir, embora as piadas sejam, quase todas, de péssimo gosto. Eu disse “quase todas” porque sempre sobram algumas de puro e excelente humor negro.
Mineiro ama trem. Conhece algum caso bom cujo enredo tenha o comprido veículo das rodas de aço? Ou cena inesquecível de filme ou trecho de obra literária?
M.J.– Serve aquela entrevista de James Stewart durante a viagem de trem no espetacular filme O Homem que Matou o Facínora? Mas a melhor mesmo aconteceu comigo, modéstia à parte. É que, descendente de holandeses, os que invadiram a Paraíba no século XVII, fui um menino ruivíssimo, de cabelo vermelho, muito mais vermelho do que o cabelo do Red Skelton, cômico americano que os leitores mais velhos devem conhecer. O amigo sabe lá o que é ser ruivo e sardento na Paraíba dos anos 1940/50? Hoje chamam de bullying, mas naquele tempo era apenas sacanagem, produto da ignorância geral. Mexiam comigo, botavam apelidos insultuosos; eu reagia com pedradas, tiros de baladeira (estilingue). Certa vez, ao viajar de trem para o sertão – veja bem que não fujo de sua pergunta –, desci numa estação para comprar uns roletes de cana, umas pitombas, quando uma mendiga, que jazia encostada numa parede, correu em direção ao filho, um neguinho de barrigão, a gritar: “Minha nossa senhora! Corre, fio, que é o diabo!”
O que carrega de inesquecível de sua passagem por Minas nos anos 50 e 60?
M.J.– Embora seja paraibano de nascimento, sou considerado “jornalista mineiro”. Meu humilde nome está na página 190 do Dicionário Biográfico da Imprensa Mineira, lançado em 1994 por André Carvalho e Waldemar Barbosa. Minha vida no final dos anos 1950 até 1963, naquela Belo Horizonte de tantas e boas amizades, era “subir Bahia e descer Floresta”, como dizia o inesquecível Rômulo Paes, companheiro na redação do Correio de Minas. Ali deitei raízes muito vigorosas e basta me recostar na cadeira de balanço aqui do sítio, encravado nos contrafortes da Serra do Mar, para Minas dominar as lembranças deste velho sertanejo já cansado. Tive belas amizades, paixões que se transformaram numa espécie de pentimento, o estudo no Colégio Marconi, onde escutávamos as maravilhosas lições do mestre Arthur Versiani Veloso… Tenho ainda em meu álbum de recordações, abrigado aqui na “fronte vã”, um período de extrema aflição que foi meu tempo como “aluno” do CPOR. Aproveitei aquela experiência para escrever meu romance Quando Alegre Partiste; transformei tudo em ficção, na qual o vivido foi pensado e curtido e depois expelido à custa de indispensável perseverança.
Em Carta a uma Paixão Definitiva, você conta que a obra do argentino Jorge Luis Borges ajudou-o muito a se recuperar de um grave acidente de carro. Como foi?
M.J.– O acidente ocorreu na Via Dutra, na noite de 18 de dezembro de 1987. Chovia muito, havia muita água na pista e eu estava com pressa de chegar ao sítio. O carro foi “fechado” por um caminhão, sobre a ponte do Rio Quiririm, e nós capotamos várias vezes. Fraturei todos os ossos do rosto, mas, em compensação, meu filho, minha mulher e a mãe dela não tiveram ferimentos graves. Passei meses para me recuperar. Como remédio, mergulhei nas páginas dos meus livros mais queridos e a obra de Borges, monumento de engenho e arte, me ajudou a esquecer as dores, o desconforto. Também mantive a meu lado o já citado Os Thibault e os versos dos poetas que me acompanham desde a adolescência. Dessa lista fazem parte, ao lado de Drummond, Jorge de Lima, Paulo Mendes Campos, Camões, Bocage (para refrescar o espírito), Celso Japiassu, entre muitos outros bardos indispensáveis… Foi uma experiência incrível, mas a ninguém desejo tanta necessidade aborrecida.
Vejo escritores bons e ótimos escondidos, sem divulgação de suas obras, e, por outro lado, medíocres incensados, tratados como se fossem gênios. O que está errado?
M.J.– Alguns amigos meus, excelentes escritores, nunca foram premiados em concurso algum e garantem que só os participantes das panelinhas conseguem tudo. Pode ser. Um desses amigos me disse que os juízes dos concursos literários preferem dar o prêmio a pessoas famosas, pois a mídia somente abre espaços e tece loas aos que podem “dar retorno”. Creio que é isso mesmo, porém, é impossível provar, pois o gosto literário de cada um é algo muito subjetivo. Se você perguntar a Graciliano Ramos, que foi juiz num célebre concurso literário nos anos 1940, por que não deu o prêmio ao iniciante Guimarães Rosa, ele dirá que votou naquele que lhe pareceu o melhor de todos…
Por que um livro ruim como Cinquenta Tons de Cinzafaz sucesso no Brasil?
M.J.– Não li Cinquenta Tons de Cinza, porque não tenho curiosidade e nem dinheiro para comprar os best-sellers. Há tanta coisa boa, maravilhosa, que ainda não li, ou li apressadamente, ou li e não entendi, que hoje ocupo meus minutos de folga com releituras. Neste momento, releio Viagem ao Fim da Noite, de Céline. Você me pergunta por que belas porcarias fazem sucesso e lhe digo que a resposta está no início deste nosso papo, quando me refiro àqueles telespectadores que veem uma reportagem na TV Bandeirantes, por exemplo, e juram que a viram na Rede Globo; e os que compram a Veja, mas não a leem.
Se pudesse dialogar por meia hora com um escritor morto, qual seria e sobre o que conversariam?
M.J.– Dar vida a um morto e com ele bater um papo de meia hora é algo muito complicado, ou façanha para Machado de Assis ou José Nêumanne no seu romance O Silêncio do Delator. Todavia, se o morto estiver a fim de me ajudar, não iniciarei nenhuma conversa; apenas pedirei a ele que me deixe psicografar um belo texto e me autorize a assiná-lo como se fosse meu. Quem sabe assim eu possa conquistar os cem leitores de Stendhal, ou cinquenta, ou vinte, ou, digamos, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas… Pronto, já me atrapalhei todo nessa desonesta tentativa de ser um grande escritor.
Você contou a uma jornalista da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) que nos anos 70 uma reportagem de jornal foi excluída de um importante prêmio jornalístico porque um dos julgadores descobriu que grande parte do texto era plágio de livro. O caso foi abafado. Pergunto: qual o nome do jornalista plagiário?
M.J.– Consideradíssimo Marcos, essa eu vou ficar devendo ao amigo. Não posso e não devo, de modo algum, divulgar o nome do plagiário, que está vivo e em plena atividade, e ignoro se continua a copiar a obra alheia. Nos anos 1970, o elemento tinha que trabalhar para plagiar, passava horas na biblioteca pública em busca de uma boa vítima. Não era fácil obter cópia xerográfica. Hoje, basta visitar o Google e pronto, o mundo está em nossas mãos. O plágio então se oferece aos que não estão dispostos a trabalhar.
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Marcos Caldeira Mendonça é editor d’O TREM Itabirano