Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Onde e quando a paz venceu a luta contra a violência

Não há no planeta um país onde a violência tenha sido combatida com mais inteligência coletiva e encarada como desafio pela sociedade tal o tamanho de sua escalada e, paradoxalmente, causando mais dores e ódio, do que os Estados Unidos. Entre as décadas de 20 e 70 do século 20, portanto durante 50 anos sucessivos, a sociedade norte-americana conviveu com uma onda de crimes tão bárbaros a ponto de o Estado ter reagido, em várias regiões e não em todo o país, com a prisão perpétua e pena de morte em cadeiras elétricas cujas cenas eram exibidas pela televisão na hora da janta como se fosse um filme de humor.

Esse era o momento da catarse social sem paralelo em nenhum outro país. Até hoje, as lembranças dessa época oscilam entre o inacreditável, o impensável e o pesadelo. Isso colocou a sociedade norte-americana no divã da psiquiatria mundial. Nesse percurso, eclodiu o ódio racial através da KKK-Ku Klux Klan, uma organização racista clandestina fundada em 1866 no estado de Tennessee, no sul dos EUA, com a participação, inclusive, de agentes do Estado, por quem, aliás, foi destruída ruidosamente com a participação engenhosa do Judiciário.

Antes chocada com a onde de crimes bárbaros como esses ocorridos recentemente no interior de São Paulo, onde dentistas são assaltados e incendiados pelos ladrões e onde a mídia, desorientada e atônita, converte bandidos em celebridades, lá a mídia pouco a pouco foi ficando solidária ao lado da sociedade, o que facilitou a vitória final.

O movimento de cultura de paz

Não incorre em erro histórico quem diz ser, hoje, a onda de crimes a ocuparem dois terços do noticiário da mídia brasileira um pinto perto da violência que já dominou os EUA cujo ponto culminante foi o assassinato em Dallas, em 1963, do presidente Kennedy (1917-63). A sociedade sofreu e aprendeu. Mas quem aprendeu mais foi a polícia – o FBI e a CIA – que acabou se transformando, com todos os defeitos que ainda possa carregar, num exemplo de polícia organizada para o mundo.

O inicio do controle da criminalidade nos EUA se deu com a melhoria das condições de trabalho da polícia e o início da implantação do projeto da cultura de paz pela sociedade com o apoio do Estado disseminado nas escolas, universidades e organizações sociais de todo o país.

A partir daí, dos anos 1930, a reação em cadeia da sociedade contra a violência, o movimento de cultura de paz se tornou uma febre nacional, a paz ingressou no curriculum escolar, criaram-se escolas, academias, universidades de paz, movimento que se expandiu pelo planeta com a participação de monges do Tibete, como Dalai Lama, Prem Rawat e outros.

Matar bandido sem ordem judicial

No Brasil, desde 2010, embora timidamente, essa proposta de cultura de paz ressoa. Em Pernambuco (Recife) ela já se espalha em academias, curso para jovens e suas famílias e universidades. Em São Paulo, através de programas radiofônicos transmitidos semanalmente por mais de 150 emissoras de rádio do interior com o apoio da Fiesp-Federação das Indústrias do estado de São Paulo, a cultura de paz é disseminada pelo monge tibetano Prem Rawat.

É uma ação ainda tímida porque para se transformar numa onda de pacificação, será preciso a junção do atual clamor público com formas de organização social mais consistentes, já que o tecido social-organizacional foi destruído com a criminalização dos movimentos sociais pelo estado a partir da ditadura militar de 1964. Uma decisão com ressonância que tende a persistir por longo tempo graças à resistência da cúpula militar em sequer discutir o seu passado quando mais revisá-lo. O esforço pela pacificação da sociedade brasileira exige uma maior ressonância política popular antes que os bolsonaros da vida coloquem em discussão dentro do Congresso Nacional a implantação da prisão perpétua e a pena de morte.

Como os crimes no Brasil são cada vez mais hediondos e a polícia, em alguns estados, se mostra amedrontada com a capacidade bélica e ousadia dos bandidos, ou a sociedade civil recria sua força organizacional perdida nos anos de chumbo e vai à luta em sua autodefesa com a fundação dos seus movimentos de paz, ou vai se contentar com decisões como essa do governador de São Paulo em oferecer R$ 10 mil a cada policial que diminuir os índices de criminalidade. Ou seja, premiar policial que matar bandidos nas ruas sem ordem judicial, prisão e julgamento. Tudo à revelia da lei. Atitude comum de países de “capitalismo selvagem”.

Filtro e interlocutor da sociedade

Essa onda de banditismo que impera no país de ponta a ponta já está produzindo efeitos de mudanças no comportamento das pessoas no interior da sociedade. E tende a produzir convergências na classe política.

As convergências serão apressadas e notáveis no Brasil, infelizmente, pela profundidade dos danos causados pelos bandidos. Mas a consistência delas naturalmente passará pelo crivo de um debate que deve ser aberto pela mídia. Que, afinal, exercerá seu papel simultâneo de filtro e de interlocutor da sociedade. O que exige a presença de profissionais cada vez mais preparados.

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Reinaldo Cabral é jornalista e escritor