Em 2008, na época senador candidato à presidência, Barack Obama foi recebido em Berlim como um popstar, aquele que finalmente livraria o mundo da dinastia Bush e modificaria a política externa dos EUA em relação ao resto do mundo. Especialmente com a ajuda da ferramenta Internet, Obama se tornara um fenômeno midiático. Naquele julho de 2008, Obama foi proibido pela chanceler Angela Merkel de falar em frente ao Portão de Brandenburgo, o monumento mais simbólico do país. Era simbolismo demais para um simples candidato.
A alternativa em termos de relevância político-histórica foi a Coluna da Vitória (Siegessäule, em alemão), construída para comemorar as vitórias militares da Prússia. Lá, Obama falou para mais de 200 mil pessoas, secas por novas trilhas, por um novo estilo político, por uma nova parceria dos EUA com a comunidade internacional (ver aqui).
Faturas em aberto
No preâmbulo da visita de Barack Obama, desta vez acompanhado por toda a família, na qual sua esposa Michelle é seu melhor cabo eleitoral, a imprensa alemã noticiou diariamente sobre as promessas até agora não cumpridas como o fechamento da prisão de Guantánamo, e também sobre o escândalo envolvendo o uso do software Prism por parte da Agência de Segurança Nacional (NSA, em inglês). De acordo com especialistas, o Prism é concebido para espionar os gigantes da internet como Google, Facebook, Microsoft, Apple entre outros.
De acordo com o jornal Kleine Zeitung , o Prism é capaz de ter acesso a dados de todos os computadores do mundo através dos grandes da internet. Não demorou muito, a histeria tomou conta da imprensa do país, que freneticamente questionava se também alemães teriam sido “investigados”. A ministra da Justiça, Leuthheuser-Schnarrenberger, exigiu posicionamento oficial dos colegas americanos sobre o procedimento de “colher informações”.
Outra fatura em aberto de Barack Obama é o caso do ex-soldado Bradley Manning (ver aqui), que quando estacionado no Afeganistão foi um maiores colaboradores do portal WikiLeaks com documentos secretos sobre a estratégia militar e diplomática dos EUA. O julgamento de Manning, que começou em 4/6, também foi tema permanente na imprensa alemã no preâmbulo da visita do presidente.
O filme Secrets: The story of WikiLeaks, exibido no Festival de Sundance em janeiro último, com estreia europeia marcada para 11/7, é resultado de uma pesquisa meticulosa do diretor e roteirista e produtor Alex Gibney e traz à mídia internacional a cobrança de um posicionamento de Obama em relação ao caso, já que, se condenado, Manning pode ser sentenciado com a pena de morte (ver aqui).
Discurso para escolhidos
Em frente ao Portão de Brandenburgo, Obama discursou para 8 mil pessoas devidamente registradas anteriormente. Antes da confirmação para o evento, todas essas pessoas foram “checadas” pela Polícia Federal (Bundespolizei, em alemão). Pleiteando o desarmamento nuclear e mais cuidado com o meio ambiente, Obama causou a ira de usuários do Twitter que comentaram: “Se Obama quer agora fazer mais pelo meio ambiente, quem foi à Conferência de Copenhagen, seu sósia?”. Outro, referindo-se à ideia do desarmamento postou: “Ele poderia ter conversado com o Putin ontem na Irlanda!!”, mencionando o encontro do G-8 realizado na Irlanda do Norte no dia anterior.
Para alemão ver
As más línguas dizem que a vinda de Obama à Berlim, dessa vez especialmente convidado por Merkel, tem cunho eleitoral para a chanceler que almeja a reeleição nas próximas eleições, em setembro próximo.
A coletiva de imprensa de Merkel e Obama na Chancelaria federal mostrou claramente a discrepância momentânea entre os dois chefes de Estado. Toda a imprensa cobrara da chanceler uma crítica em público sobre o uso do Prism. Merkel, desconcertada em criticar, mandou uma frase relativizando o próprio discurso: “A internet é um instrumento novo para todos nós”, afirmação que rendeu à chanceler todo o tipo de escárnio e gozações na net. No Twitter, o hashtag mais usado no país era #Neuland.
Obama veio a Berlim e saiu sem acrescentar absolutamente nada, a um custo para a cidade de alguns milhões de euros para a preparação minuciosa da visita, incluindo drones sobrevoando o centro governamental durante seis dias, 24 horas por dia, num barulho enlouquecedor.
Cobertura na imprensa brasileira
De um lado a cobertura sobre a visita de Barack Obama a Berlim mostra de forma indubitável a situação de precariedade intelectual e descuidado infame com leitoras e leitores em muitas editorias da imprensa brasileira.
A Folha de S.Paulo, em artigo de Bernardo Mello Franco, enviado especial a Berlim, publicou que Obama teria discursado exatamente no mesmo local em que John F. Kennedy, há 50 anos, o fez. Para dar à matéria ainda mais relevância, o jornalista mencionou a frase histórica do ex-presidente, que ratificou a sua solidariedade com o povo que acabara de ter o muro construído com a frase: “Eu sou um berlinense” (ver aqui).
Já o Jornal Nacional mencionou Berlim – acrescentando logo em seguida o nome do país: na Alemanha – além de mostrar Hartmut Mehrdorn, o atual chefe-executivo do projeto de construção do aeroporto internacional Willy Brandt, sentado na primeira fila (ver aqui).
Será que as reportagens do correspondente Marcos Uchoa, diretamente de Londres, precisam do anexo “Londres, Inglaterra”, ou “Paris,França”? Será que Berlim, a capital cultural e política da Europa, é tão “distante” assim para os brasileiros que precisam de uma informação extra?
Também o jornal português Diário de Notícias cometeu um erro afirmar: “Hoje, naquela que é a sua primeira visita oficial de como presidente, Barack Obama regressa ao mesmo local onde falou como candidato” (ver aqui).
Eu sou um berlinense
Essa frase histórica foi pronunciada por John F. Kennedy em 26 de junho de 1963 em frente ao prédio da então prefeitura da Berlim dividida, no bairro de classe média de Schöneberg (ver aqui). No auge da Guerra Fria, com a construção do muro de Berlim em 1961 e a crise de Cuba em 1962, era absolutamente infactível discursar em frente ao Portão de Brandenburgo, símbolo da divisão da cidade, arriscando até mesmo um confronto militar imediato, já que soldados das forças orientais e ocidentais ficavam posicionados frente a frente.
Micos jornalísticos como esses no contexto da visita de Obama à Berlim não são um caso à parte, mas a consequência de longa teimosia editorial de vários veículos brasileiros, não só na ordem mundial obsoleta Paris-Londres-Washington, mas também numa porção de negligência e uma atitude de subestimar leitoras e leitores.
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Fátima Lacerda é jornalista freelance, formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988