Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O ícone entre os fotógrafos de guerra

Há algo de novo nas trincheiras da memória de Robert Capa, mito supremo do fotojornalismo nos campos de batalha, morto em 1954, ao pisar numa mina: na comemoração do centenário de seu nascimento (em 22 de outubro de 1913), exposições, filme e livro redefinem sua história em conflitos armados na Europa e na Ásia. Único repórter fotográfico autorizado a desembarcar com as tropas americanas na praia de Omaha, na Normandia, no Dia D (6 de junho de 1944), que redefiniu o resultado da Segunda Guerra Mundial com saldo negativo para os nazistas, Capa colecionou aventuras só imagináveis no roteiro de uma superprodução de Hollywood. Fotografou cinco guerras ao redor do mundo, foi amigo de Pablo Picasso e Ernest Hemingway, namorou a atriz Ingrid Bergman e fundou uma das maiores agências de foto do mundo, a Magnum. Tudo isso estará no longa-metragem “Close enough”, já em produção.

Com direção de Paul Andrew Williams, o filme trará Tom Hiddleston, o Loki de “Os Vingadores” (2012), no papel do húngaro Capa, cujo nome real era Endre Friedmann, no momento em que clicou as mais célebres imagens da Guerra Civil Espanhola, hoje expostas nas paredes da Atlas Gallery, em Londres. Com curadoria de Ben Burdett, diretor da instituição, a exposição “Death in making – Photographs of war”, em cartaz até o dia 7 de julho, é o primeiro dos eventos comemorativos dos cem anos de Capa. A segunda, “Israel”, com fotos sobre a chegada de imigrantes judeus a Tel Aviv e Haifa entre 1948 e 49, será inaugurada em 5 de julho no Museu Internacional do Jornal, em Aachen, na Alemanha, onde fica até outubro.

– Na obra de Capa, o jornalismo está acima da arte – diz Ben Burdett ao GLOBO, por telefone, de seu escritório na Atlas Gallery. – Por mais que, estilisticamente, haja um requinte artístico em seu trabalho, seu interesse em documentar eventos de proporções trágicas vinha antes de qualquer ambição estética. O recorte que fizemos, para honrar seus cem anos, ao longo de 50 fotografias, algumas icônicas, outras raras, foi destacar o grande repórter que ele foi, um cronista dos fronts.

De todas as fotos clicadas por Capa expostas na Atlas, incluindo seis da coleção pessoal, Burdett destaca a clássica (e trêmula) imagem do desembarque de um soldado nas águas da praia de Omaha, no Dia D. Ela é a mais famosa das 11 que restaram de um acidente durante a revelação dos negativos, no escritório londrino da revista “Life”. Espantado com a qualidade do material fotografado por Capa, debaixo de tiros, o laboratorista Larry Burrows errou a mão na temperatura do processo de secagem das fotos e deixou velar 95 delas. As remanescentes ficaram mutiladas.

– Essa foto é uma das muitas lendas em torno de Capa, pois, ao mesmo tempo em que se propaga a história do erro no laboratório da “Life”, existe a hipótese de ele ter simplesmente perdido o foco ao se desviar das balas de fuzil – questiona Burdett, celebrando o achado de uma Leica, o primeiro aparelho fotográfico profissional de Capa.

Com ela, Capa sacou uma foto do revolucionário russo Leon Trotsky durante um discurso dele na Dinamarca em 1932. Nessa época, ele vivia na Alemanha, para onde se mudou aos 18 anos, e começou a namorar a fotógrafa Gerda Taro (1910-1937), sua primeira paixão, reconstituída em tom de folhetim no roteiro do filme “Close enough”. A atriz inglesa Hayley Atwell (“O sonho de Cassandra”) viverá Gerda no longa estrelado por Tom Hiddleston.

– A meta do filme é expor como Capa se jogava sem medo na vida, fosse na guerra, fosse no amor – disse Hiddelston ao GLOBO, em entrevista em Cannes, em maio.

Foi por sugestão de Gerda Taro que Robert Capa abriu mão de seu nome de nascença, judeu húngaro, e adotou o pseudônimo pelo qual ficaria famoso, a partir de suas fotos na Guerra Civil Espanhola, de 1936 a 1939. Ele adotou seu apelido de escola, cápa (tubarão em húngaro) como sobrenome e somou, por dica de Gerda, o nome Robert, para parecer americano. Pela sonoridade, a alcunha adotada pelo fotógrafo provocava uma (proposital) associação entre ele e o cineasta Frank Capra (1897-1991). Capa acabou naturalizando-se cidadão dos EUA, em 1946.

– No momento em que sai da Hungria e deixa de ser Endre Friedmann para virar Robert Capa, ele se reinventa, pela arte da fotografia e pelo desejo de aproveitar a vida – diz Tom Hiddleston, que esteve no Festival de Cannes com “Only lovers left alive”, de Jim Jarmusch, e vai à Espanha em julho, para filmar “Close enough”.

Foi em solo espanhol, nos anos 1930, que Capa produziu fotos – hoje em exposição na Atlas Gallery – como a de uma menina deitada à espera da evacuação de Barcelona.

– Em leilões, as fotos tiradas por Capa costumam ser vendidas por valores que oscilam entre US$ 2 mil e US$ 20 mil, dependendo da popularidade da imagem. A maioria custa cerca de US$ 10 mil. Mas, com o centenário, esse preço subiu – diz Ben Burdett, que expõe na Atlas uma foto da Segunda Guerra com o corpo caído de um soldado americano baleado por um atirador alemão.

Ainda na fase da Espanha – onde Gerda morreria, em 1937 –, Capa sacou outra imagem icônica, “O soldado caído”, na qual um combatente da Federação Ibérica das Juventudes Libertárias aparece sendo baleado, em Cerro Muriano, em 1936. Como o negativo sumiu, sua autenticidade foi questionada, sob a suspeita de que o gesto do guerrilheiro fosse encenado, a pedido do fotógrafo.

‘A maleta mexicana’

A dúvida sobre a veracidade da foto foi diluída em 2008, quando três pastas de papelão contendo 3.500 negativos, que Capa considerava ter pedido em 1944, durante um cerco nazista, foram encontradas no México. Esse material, chamado de “a maleta mexicana”, foi encaminhado ao Centro Internacional de Fotografia, fundado e mantido em Manhattan, pelo irmão de Capa, Cornell. De lá saíram as fotos expostas na mostra alemã “Israel”. Nelas, Capa documenta a chegada de grupos de refugiados judeus.

Também do Centro saíram as fotos usadas pelo livro “Robert Capa: The Paris Years 1933–1954”, de Bernard Lebrun e Michel Lefebvre, publicado no passado, mas relançado agora, de carona no centenário. Nele, os autores exploram como Capa usou uma rede de contatos na França para promover seu talento. Ao mesmo tempo, o nonagenário jornalista John Morris, editor de Capa na “Life”, prepara uma nova versão do livro “Get the picture”, com histórias do fotógrafo.

No Rio, a mostra Fotocine, que começa na terça-feira [25/6], na Caixa Cultural, homenageia Capa ao exibir, no dia 28, às 16h, “Fotógrafo de guerra”, (2001), de Christian Frei. Ainda no evento, no dia 4, às 19h, um debate com os fotógrafos Evandro Teixeira e João Roberto Ripper, volta a citar Capa.

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Rodrigo Fonseca, do Globo