Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A terceira vítima

Se o discreto Ruy Castro, a folhas tantas, quis contar o milagre sem abrir o santo, não sou eu que vou fazê-lo aqui. Me permitam, porém, retomar a história, que além de divertida é instrutiva, e a ela acrescentar detalhes – nem todos, vou avisando, conforme a chamada verdade dos fatos. Se o personagem achar que exagerei nas liberdades de ficcionista, esteja servido de finalmente sair da toca e a bem de todos nos dizer como foi mesmo que a coisa se passou.

Trata-se de excelente e experimentado jornalista, à época – 1981 – correspondente, em Roma, de um grande jornal brasileiro cujo nome cabe a você adivinhar. Pois bem, era maio, mês de Maria e também das férias do operoso homem de imprensa, que programou passar uns dias com a mulher, por sinal xará da santa, num sossegado recanto da Hungria.

A ideia era partir no sábado, 16 de maio, mas o panorama em Roma estava tão tranquilo que o jovem casal houve por bem – por mal, como veremos – antecipar a viagem. Nem seria preciso comunicar à redação, no Brasil, a mudança de planos; bastaria deixar pronto um artigo para o final de semana, e pedir a um colega que o remetesse em seu nome.

Tema recorrente

Para você que chegou depois, é preciso abrir parágrafo e explicar que a história é do tempo do telex, dispositivo que os antigos usavam para transmitir matérias. Imagine um híbrido de telefone e máquina de escrever em que o texto, ao ser datilografado, se convertia numa fita picotada que, no momento da transmissão, ia sendo sugada pelo aparelho, qual espaguete entre os lábios de criança travessa, para virar texto outra vez no telex do destinatário.

Foi uma fita assim que o nosso desastrado amigo confiou a um amigo, para que este o enfiasse na máquina na sexta-feira, data em que o autor, de mulherzinha a tiracolo, já estaria no bem-bom das férias, nas entranhas da Hungria.

Mal se instalara ele, porém, num fotogênico chalé, e acendera seu primeiro charuto, quando viu chegar, esbaforida, esbugalhada, a gerente do estabelecimento, que tentava lhe dizer alguma coisa, só que em húngaro. Impermeavelmente monoglota, a criatura, em desespero, recorreu por fim à mímica, e traçou no ar o gesto de quem abençoa um povaréu, para em seguida disparar três monossílabos “pá! pá! pá!”, e então, levando as mãos ao ventre, estampar uma careta de dor.

E foi assim, aos arrancos, que naquela quarta-feira, 13 de maio de 1981, o jornalista se inteirou de que na praça de São Pedro – no coração, portanto, de sua sesmaria jornalística – o papa João Paulo II tinha sido baleado por um terrorista turco. Atingido em ricochete, ele abortou instantaneamente as férias e tratou de retornar a Roma – tarefa duríssima para quem fora parar nos cafundós de um país comunista, onde a mais trivial providência podia precipitar cidadãos e forasteiros nos intestinos de uma elefantina burocracia de Estado.

Corta para a redação do jornal, onde, mal chegada a notícia do atentado, todos se precipitaram para a boca do telex, à espera de ver brotar o relato do diligente repórter. Nada. Telefonemas aflitos para a casa dele. Nada. Na sexta-feira, finalmente, a máquina tilinta – e começa a excretar uma gélida análise sobre alguma atemporal irrelevância da vida italiana. Mas o que é isso, meu Deus? O fulano endoidou? O papa leva um tiro e o camarada vem com esse bloco de gelo nada-a-ver?!

Uma segunda mensagem, no mesmo dia, trouxe um cabisbaixo pedido de demissão do repórter – o qual, no rescaldo dos acontecimentos, ficaria sendo uma das três vítimas do atentado, junto com o papa e o autor dos disparos, Mehmet Ali Agca, preso no ato. Perdeu assim nosso jornalismo uma sentinela avançada (a propósito: vem aí uma edição aumentada de O Pai dos Burros, o meu dicionarinho de lugares-comuns) em continente europeu, mas ganhamos todos com a incorporação, em terras brasileiras, de um invulgar talento da televisão.

Se ninguém se opuser, posso voltar ao tema dos desastres jornalísticos, aí incluído, se houver, algum que tenha sido protagonizado por este vosso cronista.

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Humberto Werneck é jornalista e escritor