Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Ficção e realidade na cidade olímpica

Que o Rio de Janeiro é uma farsa, não é novidade para ninguém. É, definitivamente, uma cidade que vive de aparências. Não só das aparências paisagísticas, mas também de toda sua autenticidade carioca, que é vendida como um dos melhores produtos da cidade. A colagem desses dois elementos revela uma fotografia demasiadamente comercial, tanto interna quanto externamente.

É sabido que a experiência que esse sujeito autêntico possui com a cidade está diretamente ligada à sua localização geográfica no espaço urbano, portanto, ao seu território, o que nos permite dizer que sujeito social e condição socioeconômica caminham juntos. Se por um lado as cidades são os geradores da diversidade por excelência, por outro ela é revelada diferentemente a partir de cada classe social e de sua localização no território urbano. Marx não está tão ultrapassado. A luta de classes permanece, agora camuflada pelas amarras sociais contemporâneas na qual os referenciais simbólicos ganham destaque e passam a valer como instrumentos para separação das classes.

A educação e o capital cultural passam a ganhar valor de mercado: é especialmente a partir desses referenciais que as disputas sociais e econômicas passam a se dar. Com base nessa premissa podemos perceber que as representações que criamos da cidade podem flutuar na medida em que esses referenciais são trabalhados sobretudo pela mídia e pelos grandes meios de comunicação.

O Rio de Janeiro vive agora um momento único na sua história: em um curto espaço de tempo sediará dois importantes eventos esportivos mundiais: Copa do Mundo (2014) e Olimpíadas (2016), além de outros grandes eventos. A imagem da cidade passa a ganhar nesse momento um destaque e uma preocupação singular por parte das esferas públicas. O presente artigo pretende investigar brevemente, a partir da apresentação de alguns casos recentes, como a imagem da cidade do Rio de Janeiro vem sendo trabalhada de forma a criar para os cidadãos, e especialmente para os turistas, a imagem de uma cidade que se reinventa e que passa por um momento de reformulação em todos os aspectos sociais e políticos.

A participação cidadã

O reflexo dessa preocupação e da incorporação da parte marginalizada da cidade dentro desse grande projeto de revitalização talvez seja a instauração e especialmente todo o aparato de propaganda realizado a partir da implementação das UPPs – Unidades de Polícia Pacificadora. Trata-se de um projeto do governo do estado do Rio de Janeiro iniciado em 2008 que tem o objetivo de implementar polícias comunitárias nas favelas da cidade, como forma de poder assegurar o controle dos territórios que antes eram ocupados e controlados por poderes paralelos ao Estado.

O fato é que a instalação das UPPs não veio acompanhada de um projeto maior, que poderíamos preliminarmente chamar de planejamento sociocultural. A segurança e a paz nos territórios são importantes, não há dúvidas, mas somente isso não assegura o direito de cidadania dos moradores do local.

A proibição de realização dos bailes funks nas localidades que receberam as UPPs é um reflexo dessa atitude. Proíbe-se, portanto, uma das principais representações socioculturais contemporâneas das favelas cariocas. Alega-se que o motivo dessa proibição é o fato de que os bailes funks fazem apologia às drogas e ao crime, não só, em alguns casos, pela exibição pública de armas de fogo e o consumo explícito de drogas, mas também pelas letras de funk reproduzirem um tipo de discurso e um comportamento contrário ao que pretende a Secretaria de Segurança do Estado. Ora, ao proibir a representatividade de expressão de uma parte significativa das favelas, o projeto das UPPs toca em um ponto deliciado das discussões contemporâneas sobre participação cidadã. Uma das formas de se atuar na cidade é fazer-se ver representado nela, ou pelo menos no território em que se vive.

Especulação imobiliária e alto custo de serviços

Não por acaso, uma das plataformas da campanha política do MC Leonardo nas eleições municipais de 2012 foi a luta contra a discriminação do funk. MC Leonardo é músico oriundo de favela e se candidatou a vereador no Rio de Janeiro. É um dos fundadores da APAFunk – Associação dos Amigos e Profissionais do Funk, associação criada em 2008.

No site da APAFunk, encontramos a seguinte informação:

“‘A APAFunk não é modismo, é uma necessidade…’ A APAFunk foi fundada em 10 de dezembro de 2008, por profissionais e amigos do funk cansados de assistir à discriminação sem fazer nada. O intuito é defender os direitos dos funkeiros e lutar pela Cultura Funk, contra o preconceito e a criminalização. Para isso, a Associação promove debates na sociedade sobre a situação dos artistas do funk, bem como atividades de conscientização dos funkeiros sobre seus direitos. Rodas de funk, palestras e vídeos são alguns instrumentos utilizados pela associação para levar a mensagem da Associação para universidades, escolas, cadeias, favelas, praças, ruas e todas as instituições da sociedade que abram espaço para debater a nossa cultura.

Em nossa pequena trajetória, já conquistamos a Lei Funk é Cultura (Lei 5543/2009), um marco definidor do início da mudança da relação do Estado com os funkeiros: ao invés de repressão, exigimos respeito, fomento e incentivo. No embalo dessa conquista, nasceram os primeiros editais do governo do estado voltados diretamente para a cultura funk, o primeiro programa com programação de funk carioca em uma rádio pública, além do maior baile funk da história: o Rio Parada Funk […]” (in: http://www.apafunk.org/a_apafunk.html, acesso em 18 de maio de 2013, às 17:19).

É importante perceber que a APAFunk nasce no mesmo ano de implementação das UPPs, isto é, em 2008, e que a missão institucional da associação está diretamente ligada à aproximação e negociação com o Estado.

As UPPs, para além da questão da segurança pública que obviamente é pertinente, estão, portanto, diretamente ligadas à reestruturação da imagem da cidade do Rio de Janeiro como cidade olímpica. De 2008 para cá, o conluio que se forma claramente entre o Estado (governo estadual e município) com os grandes meios de comunicação é desavergonhado. As propagandas de TV, rádio e imprensa escrita são corriqueiras ao vender uma cidade que, sabemos, não existe. Pelo menos para a maior parte dos cariocas. Talvez para os especuladores e grandes empresários o Rio de Janeiro seja mesmo a cidade da vez para os investimentos. Por outro lado, para os moradores, desde que a cidade foi anunciada como sede da Olimpíada 2016, tudo se transformou.

A especulação imobiliária e o alto custo de todo e qualquer tipo de serviço tem feito os moradores migrarem dentro do próprio perímetro urbano para áreas com menor poder de especulação (mas nem por isso baratas). A atuação do governo associada aos grandes veículos de comunicação de massa e às grandes empresas estão criando uma cidade fictícia. A problematização ocorre quando a ficção começa a ser reproduzida de tal modo que cria-se a ilusão de que a cidade está tomando rumos melhores e entrando no novo período de reconfiguração.

“A van do terror passou no caminho deles”

Sabemos que a criação de uma cidade passa inevitavelmente pelas interpretações subjetivas que fazemos desse espaço e pela relação que temos, enquanto indivíduos, com o espaço urbano. Questiona-se aqui, portanto, essa relação que a esfera pública faz com os grandes meios de comunicação no intuito de construir uma imagem que está sendo exaustivamente vendida e que, sabemos, é uma colagem. Parece-nos que especialmente para o olhar do turista, seja estrangeiro ou mesmo brasileiro, mas que em ambos os casos ocupa um lugar desprivilegiado inerente a essa posição, essa construção tem um poder demasiado forte.

Embora os moradores locais também estejam sujeitos a essas reproduções, tendemos a acreditar que uma parcela, talvez a minoria, esteja consciente dos verdadeiros rumos que a cidade está tomando: sendo transformada em uma cidade de fachada para ser vendida e consumida pelos turistas e pelos grandes empresários, da qual os moradores estão sendo paulatinamente excluídos pelas diversas especulações, inclusive subjetivas, a que vêm sendo expostos. Para preservar a imagem da cidade vale tudo.

Há pelo menos três casos ocorridos neste ano que merecem destaque. A seguir faremos uma análise desses fatos a partir da repercussão na imprensa da cidade.

Na madrugada do dia 30 de março de 2013, um casal de jovens gringos (ela norte-americana e ele francês), após pegarem uma van em Copacabana com destino à Lapa, foram vítimas de um sequestro relâmpago seguido de roubo, agressão física e, a mulher, violentada sexualmente. O evento ganhou repercussão na mídia carioca e na mídia nacional e estrangeira, especialmente pelo fato de ter ocorrido a violência sexual.

A reportagem do jornal O Globo do dia 06 de abril de 2013, diz o seguinte:

“A cor de pele já curtida do sol da Praia do Arpoador e o português fluindo fácil, apesar de estar há apenas sete meses no Rio, fez da jovem de 21 anos, uma bela estudante de Relações Internacionais, uma autêntica carioca. Na verdade, a morena é americana. O namorado dela é um francês de olhos azuis, de 22, que também aprendeu rápido o idioma. Para tirar as dúvidas em português, consultava um dicionário da língua daqui para o espanhol, que ele já domina. O destino dos dois se cruzou no Rio, durante um intercâmbio numa universidade carioca, no ano passado. Para o namoro foi um pulo. Cheios de sonhos, ambos pretendiam ficar até julho no Brasil, quando ela terminaria o curso, mas a van do terror passou no caminho deles” (in: http://oglobo.globo.com/rio/do-amor-no-rio-ao-inferno-da-violencia-casal-vitima-na-van-8048203, acesso em 19/05/2013, às 2:06).

“Aqui não há impunidade”

O tom da reportagem, embora apresentando as informações, cria subliminarmente um clima tropical e ideal da cidade do Rio de Janeiro, no qual o estrangeiro aqui residente parece encontrar um lugar ideal para viver. É notório que essa ambientação, como apontado anteriormente, pertence a um determinado grupo privilegiado situado na zona sul da cidade, pois a realidade do “verdadeiro” Rio de Janeiro difere em muito da imagem apresentada.

Em reportagemdo jornal O Globo do dia 02 de abril de 2013, uma leitora diz o seguinte:

“[…] infelizmente, foi preciso acontecer com o casal de turistas para que o caso tivesse tamanha repercussão; quantas outras barbaridades precisaremos nós (brasileiros) suportar até que apareça um turista para fazer com que seja feita a justiça devida”.

O caso ganhou repercussão na mídia internacional, especialmente nos Estados Unidos, país de origem da vítima, o que, de alguma forma, pressionou as autoridades brasileiras a solucionarem o ocorrido de forma mais rápida e eficaz.

Em reportagemdo dia 01 de abril de 2013, o jornal O Globo trazia reportagem com o seguinte título: “Estupro de turista dentro de van gera impacto negativo na imagem da cidade”. A reportagem diz o seguinte:

“A pouco mais de três meses de um dos maiores eventos religiosos do planeta, a Jornada Mundial da Juventude, que atrairá centenas de milhares de jovens cristãos para a cidade, a terrível viagem de um casal de turistas americanos a bordo de uma van, que começou na Praia de Copacabana e acabou numa delegacia, expõe a face mais cruel do Rio.

[…] Além da violência em si, o impacto do crime na imagem do Rio — agências de notícias internacionais replicaram durante toda a segunda-feira os desdobramentos das investigações sobre o caso — é um revés no bom momento vivido pela cidade, impulsionado pelos resultados da atual política de segurança do estado. As reações foram imediatas.

[…] Ninguém quer um assalto numa van em Bonsucesso ou no Complexo do Alemão, mas em Copacabana, cartão-postal famoso mundialmente?”.

Em reportagemdo dia 09 de abril de 2013, o governador do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, deu o seguinte depoimento:

“Nossa polícia agiu rápido, prendendo os responsáveis, demonstrando que aqui não há impunidade. Por outro lado, graças a Deus, esse não é um crime comum no Rio e no Brasil. Violência contra a mulher, infelizmente, ainda existe. O Rio está aparelhado com delegacias da mulher”

Ocupação e militarização da favela deixa lacunas

Há, porém, uma contradição com os números apresentados em outra reportagempelo mesmo jornal:

“A escalada dos estupros no Rio também preocupa. De acordo com o Instituto de Segurança Pública, em 2012 foram contabilizados 6.029 casos, 23,7% a mais do que em 2011 (4.871)”.

Na madrugada do dia 4 de abril de 2013, poucos dias depois do caso da van com os turistas estrangeiros, um jovem foi assassinado na favela do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro. A favela conta com uma unidade Polícia Pacificadora desde janeiro de 2013. Não existem comprovações de envolvimento direto de policiais da UPP no caso, embora essa possibilidade permaneça aberta nas investigações. De todo modo, existem outros casos semelhantes em que afirma-se que os assassinatos foram cometidos pelos próprios policiais da Unidade de Polícia Pacificadora. Alguns desses casos ainda tramitam na justiça do estado.

O caso ocorrido em abril desse ano, no entanto, chama a atenção pelo fato de ter sido abafado do debate público. As TVs praticamente não noticiaram o caso, e o jornal O Globo, o principal e maior jornal impresso da cidade do Rio de Janeiro, negligenciou completamente o fato. A repercussão do caso se deu basicamente pelas redes sociais e por algumas breves notícias em outros jornais de cunho popular, como o jornal Extra. (ver aqui).

Passado aproximadamente 40 dias após o caso, ainda é difícil encontrar notícia sobre o andamento do processo, em parte, sabemos, pelo fato de se tratar de uma notícia pouco vendável pelos meios de comunicação. Por outro lado, podemos perceber um negligenciamento da informação para a sociedade. Mais uma vez abafa-se o caso no intuito de preservar a imagem da cidade que deve ser vendida internacionalmente. Na página oficial da UPP não há informações a respeito desses casos. Chama a atenção, no entanto, perceber que o site oficial da UPPpossui uma versão em inglês. Existe, portanto, uma edição de conteúdo de modo a ser vendida internacionalmente. Os erros não devem aparecer.

Reconhece-se a atuação e a necessidade dessa estrutura dentro das favelas cariocas, mas apenas a ocupação e a militarização desses territórios deixam importantes lacunas em aberto. Nesse sentido, a sociedade civil, as organizações não governamentais e os diversos atores interessados nessa discussão mobilizam-se para preencher essa brecha. A APAFunk é, sem dúvida, uma das organizações que surge dessa mobilização.

Uma instituição que está “no fosso”

Já no dia 27 de abril de 2013, o jornal O Globo traz uma matéria com o seguinte título: “Orquestra no fosso”. Trata-se de uma matéria na qual o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, diz publicamente que a prefeitura suspenderá o apoio de 8 milhões de reais à Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira, organização que gerencia a Orquestra Sinfônica Brasileira – OSB. A reportagem diz o seguinte:

“Efeito Olimpíada. Ao suspender apoio à OSB, Paes alega necessidade de investir na preparação da cidade para os eventos esportivos que acontecerão até 2016. […] A prefeitura do Rio acaba de suspender, por tempo indeterminado, a parceria que tinha há 20 anos com a fundação que administra o conjunto. Isso significa que a OSB perderá 20% de seu orçamento anual: R$ 8 milhões dos cerca de R$ 40 milhões de que dispõe anualmente. Ao explicar a medida, a prefeitura diz que ela faz parte de um contingenciamento que atinge diversas outras áreas” (O Globo, 27/04/2013).

A repercussão da reportagem gerou o que alguns dias depois o próprio jornal O Globo estava chamando de crise. A começar pelo título da matéria, a reportagem trouxe consequências institucionais à OSB, visto que existem outros grandes patrocinadores envolvidos. No dia 29 de abril de 2013, o jornal O Globo publica uma reportagemcom o título “Em nova crise, OSB pede que músicos mantenham o ‘foco’”. Um dos trechos diz o seguinte:

“Até 2012, os patrocinadores da FOSB eram a prefeitura, o Ministério da Cultura, a Vale, o BNDES e a Carvalho Hosken. Ontem, o colunista do Globo Ancelmo Gois informou que o apoio da Vale corria risco de também ser suspenso — após a publicação da nota, a empresa negou a informação. Por meio de sua assessoria de imprensa, afirmou que o apoio de R$ 24 milhões firmado com a FOSB em 2011 segue de pé até o fim da temporada de 2013”.

O tom dado à reportagem inicial gerou uma instabilidade interna perante o corpo da orquestra (músicos e técnicos) e institucional (perante os patrocinadores), que não querem ver sua marca associada a uma instituição que está “no fosso”. A reportagem, de alguma maneira, criou uma crise pública para a instituição, que até então não existia.

“A OSB podia dar mais projeção à cidade”

Em reportagem posterior, datada de 30 de abril de 2013, em uma tentativa de solução do problema, o prefeito Eduardo Paes sugeriu a união das duas maiores orquestras existentes na cidade do Rio de Janeiro, a OSB e a Petrobrás Sinfônica, sem antes, no entanto, fazer qualquer tipo de comunicação oficial às instituições. Dessa forma, tanto a OSB quanto a Petrobrás Sinfônica ficaram sabendo da proposta diretamente pelos jornais. As duas orquestras emitiram notas informando que não teriam interesse na integração. O prefeito, no entanto, esqueceu de mencionar que existe ainda uma terceira orquestra na cidade do Rio de Janeiro: trata-se da Orquestra do Theatro Municipal. Destacamos abaixo alguns trechos da reportagem:

“O Rio tem duas orquestras sinfônicas: a OSB e a Petrobras. Uma tem como regente (Isaac) Karabtchevsky, meu querido amigo. Outra tem (Roberto) Minczuk, com quem tenho uma boa relação. Os músicos que tocam nelas são, em muitos casos, os mesmos. Uma (a OSB) custa R$ 40 milhões por ano. A outra, R$ 20 milhões. O que eu quero chamar a atenção aqui é que a cidade merece ter uma orquestra sinfônica, mas que a prefeitura não vai bancar vaidades”, disse Paes. “Tenho defendido que as orquestras se integrem e tenham orçamento volumoso para ter a projeção que o Rio realmente merece. Fazer coisa capenga nesse mundo da música erudita faz com que os R$ 40 milhões gastos (na OSB) pareçam pouco.” […] Avisou, no entanto, que “o dinheiro público tem que ser investido em coisas que de fato deem projeção à cidade”. “Eu chamaria de OSB-Petrobras ou de Petrobras-OSB. Não importa (a ordem)”, palpitou Paes. “Oito milhões de reais (valor repassado à FOSB em 2012) não é qualquer gorjeta. Somem-se a isso os R$ 25 milhões de manutenção anual da Cidade das Artes. São mais de R$ 30 milhões só para esse tipo de música. É bastante recurso! A prefeitura não se nega a ajudar, mas, às vezes, a gente precisa fazer certas rupturas para que as pessoas entendam que não estão cuidando de feudos, de guetos. Elas têm que atender ao interesse da cidade”.

No dia 1º de maio de 2013, Luiz Paulo Horta, também no jornal O Globo escreve um artigono qual critica a postura do prefeito diante da possibilidade de retirar o apoio à OSB. Horta expõe o seguinte:

“Chamado a explicar a decisão da Prefeitura de não dar mais apoio à Orquestra Sinfônica Brasileira, o prefeito Eduardo Paes, como se diz na gíria, “surtou”. Seus comentários fariam sentido numa conversa de beira de piscina. Como declarações de um prefeito, e de uma cidade como o Rio de Janeiro, são de uma deselegância total, e de uma absoluta impropriedade. O que é mais triste: tudo isso por causa de 8 milhões, que é o que a Prefeitura dava à OSB, e que correspondem a 20% do orçamento total da orquestra. O equivalente a um show de rock, desses que a Prefeitura volta e meia patrocina. Diz o prefeito: ‘Dinheiro público tem de ser investido em coisas que dão projeção à cidade. A OSB, infelizmente, podia dar mais projeção à cidade’. Isto, para o prefeito, seria conseguido se a OSB de fundisse com a Petrobras Sinfônica – a outra grande orquestra do Rio de Janeiro”.

Uma imagem que não corresponde à realidade

No dia 2 de maio de 2013, após uma reunião com os representantes da OSB, o prefeito Eduardo Paes volta atrás e decide manter o apoio à orquestra. Em contrapartida, o secretário municipal de cultura terá um assento no conselho da Fundação. A reportagemdo jornal O Globo nesse mesmo dia traz o seguinte:

“O valor, que representa 20% do orçamento da FOSB e que tinha sido suspenso em março – conforme revelou O Globo –, fica agora garantido até 2016, quando chega ao fim o mandato de Paes. No encontro de ontem, que durou cerca de uma hora e meia, o prefeito pediu, no entanto, que a OSB se esforce para superar a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) em qualidade. Ele quer que o Rio tenha ‘a melhor orquestra do país’”.

Finalizada a crise, a Orquestra Sinfônica Brasileira poderá continuar normalmente com a programação planejada e os compromissos assumidos. Cabe destacar que um corte dessa proporção, em uma instituição sem fins lucrativos e com finalidade cultural, deve ser minimamente planejada de modo a dar tempo para a instituição se reorganizar sem essa parcela dos recursos. A decisão do prefeito, a partir da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, foi imparcial e colocou a Fundação em uma situação pública delicada, visto que toda a negociação foi coberta pela imprensa da cidade.

Fica a seguinte dúvida: se existem tantas oportunidades na cidade e uma grande circulação de dinheiro de investidores, por que não aproveitar o momento para investir ainda mais no maior conjunto sinfônico da cidade? Ou mesmo estruturar uma nova orquestra?

As situações expostas, embora pertencentes a áreas e realidades distintas, revelam algo em comum: a preocupação do Estado (governo e município) em manter limpa a imagem da cidade do Rio de Janeiro, especialmente para o cenário internacional.

Nos três casos abordados é visível a preocupação e o trabalho das autoridades na tentativa de se criar uma imagem que não corresponde à realidade. Investe-se hoje, na cidade do Rio de Janeiro, somente em ações que podem projetar a cidade de forma comercial. O custo que pagamos por isso é caríssimo, pois parece não haver um planejamento de longo prazo com a cidade e especialmente com os moradores que aqui continuarão vivendo.

Pano de fundo dos cartões postais

No imediatismo dos grandes eventos que estão por vir, tanto as autoridades como os meios de comunicação da cidade trabalham em conjunto na construção de uma imagem fictícia: os fins justificam os meios. O caso da OSB mostra que mesmo a instituição sinfônica mais antiga do país pode sofrer cortes de investimento se não der visibilidade à cidade. E mesmo com a decisão de se manter o apoio até 2016, a prefeitura solicitou aos diretores da OSB, que a orquestra fosse transformada na maior e principal orquestra do país (posto hoje ocupado pela Osesp – Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo).

O Rio de Janeiro, historicamente, tem uma vocação para vender sua imagem a partir de seus cartões postais. A pergunta é: quem usufrui de toda essa beleza vendida e exportada? Os cariocas? Em sua maioria, certamente não. Zuenir Ventura, no livro Cidade partida (1994), retrata muito bem essa realidade. No entanto, as atuais medidas adotadas pelas políticas públicas em função dos grandes eventos contribuem ainda mais na estruturação desse estigma ao reforçar a divisão das barreiras geográficas e simbólicas para os moradores da cidade. Trata-se de criar um espaço privilegiado, no qual apenas os mais abastados e os turistas têm possibilidade de uma vivência e circulação dignas.

A cidade está sendo entregue às empresas. Se há dinheiro, há sempre algum espaço da cidade que pode ser negociado. A parceria público-privada no Rio de Janeiro ganha outras dimensões para além das possibilidades de controle do Estado e muito além dos interesses reais de longo prazo da cidade. As relações econômicas e imediatistas passam a ser o balizador dessas parcerias.

No caso das localidades com UPP, além da militarização (necessária ao espaço), também há uma ocupação desses territórios por parte de empresas que veem ali possibilidade de lucro, afinal, é uma camada (ascendente) da população que, em sua maioria, era excluída do consumo formal. Bancos, lojas varejistas de móveis e eletroeletrônicos, são algumas das modalidades que apostam nessa ocupação. Dessa forma, a especulação imobiliária e financeira não ficou restrita ao asfalto, ela agora chega à favela, que passa a ser vendida formalmente como ponto turístico da cidade e como uma realidade que ainda se mantém preservada e autêntica em meio às grandes transformações que assolam o espaço urbano das grandes capitais. A política adotada atualmente objetiva justamente inserir o Rio de Janeiro no rol das grandes cidades mundiais. Em termos práticos isso acarreta diversas consequências. E alguém deve pagar essa conta.

Por fim, é importante esclarecer que todas as fontes usadas na argumentação do artigo foram buscadas propositalmente nos principais veículos de comunicação atuantes no Rio de Janeiro. Isso, em alguma medida, demonstra a articulação unidirecional que existe entre as esferas pública e privada, de modo a recriar e vender a cidade do Rio de Janeiro como um modelo e como um local propício aos grandes investimentos financeiros, não obstante as partes periféricas da cidade continuam assoladas em situações extremas. Na colagem da imagem vendida, essas zonas excluídas sequer aparecem e, quando aparecem, geralmente como pano de fundo dos cartões postais, são travestidas da autenticidade dos morros cariocas. O capital tudo transforma: a pobreza vira um produto autêntico a ser explorado, inclusive pela esfera pública.

Aguardemos as próximas notícias!

Referências

APAFunk

O Globo(jornal impresso), de 27/04/2013

O Globo online: aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aquie aqui.

VENTURA, Zuenir. Cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994

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Valterlei Borges de Araujo é professor e produtor cultural, Rio de Janeiro, RJ