Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Médico para que e para quem?

A recente iniciativa do governo federal de tornar obrigatória a vivência no Sistema Único de Saúde por parte dos estudantes de Medicina durante dois anos (“Formando de Medicina terá de trabalhar dois anos no SUS”, Folha de S.Paulo, 9/7/13) fez, como se esperava, os holofotes midiáticos monopolistas focarem naquilo que mais convém, anunciando um falso problema: uma possível ingerência do governo sobre aqueles que acumulam, talvez, o maior peso político no Estado brasileiro entre as profissões. Conquistado, aliás, com um processo histórico de controle dos corpos e dos comportamentos nos termos da polícia médica, como nos conta o clássico de Jurandir Freire Costa Ordem Médica e Norma Familiar.

Antes de mais nada, é preciso esclarecer: o problema que o governo federal pretende enfrentar é a ausência de médicos no nível da atenção básica no interior dos estados. Seria pertinente, caso os leitores pudessem entender o funcionamento deste nível de atenção. Alguns estudos demonstram que a atenção básica, quando dotada de insumos e profissionais qualificados, é capaz de resolver 85% dos problemas de saúde da população, como as doenças crônicas degenerativas e o acompanhamento das crianças, gestantes e idosos. A atenção básica hoje no Brasil é composta por Equipes de Saúde da Família que têm na sua composição enfermeiros, médicos, dentistas e agentes comunitários de saúde. Todos eles, a partir de um planejamento do trabalho, organizam as práticas e cuidados para uma atenção preventiva.

A primeira ocultação no debate reside aqui. É preciso conhecer o perfil epidemiológico da população do interior do Brasil, conhecer a capacidade de intervenção de cada profissional que compõe a atenção básica antes de concluir que a crise da saúde se deve à falta de médicos. É muito comum equipes compostas apenas por enfermeiros conseguirem responder pela maioria dos problemas de saúde com muita resolutividade e satisfação dos usuários. Em que pese a desagradável sobrecarga de trabalho da enfermagem, o que limita uma maior abrangência das suas ações, se deve, além da falta de insumos, às restrições legais que a corporação médica impõe, com aval do governo brasileiro, ao exercício profissional, como, por exemplo, no caso do diagnóstico e da prescrição. Para tratar o resfriado, apenas uma profissão.

As verdadeiras causadoras da mortalidade infantil

O segundo debate está inserido na problemática da formação. A medicina brasileira, e nos sistemas capitalistas, vem acompanhando pari passu o desenvolvimento tecnológico das especializações em detrimento da atenção básica que, como vimos, pode responder a 85% dos problemas de saúde da população. Significa dizer que o currículo de Medicina no Brasil não tem preparado profissionais para evitar que as pessoas fiquem doentes, mas para cuidar dos agravos quando já instalados. Uma comparação pouco repercutida pela mídia monopolista é de que os melhores indicadores de saúde da América Latina são cubanos, país referência na formação médica para os cuidados preventivos. Hoje, nas faculdades de Medicina, inclusive com o estímulo dos professores, se dá ênfase à rentabilidade da cirurgia plástica estética e se desprestigia a atenção básica como área daqueles médicos fracassados.

Por último, não é preciso ampliar muito a enquete nas ruas para saber quem são os médicos e médicas brasileiras, diferente de Cuba e até da Inglaterra – como se pode ver no filme Sicko, de Michael Moore. Todos de origem abastada, interessados, em sua maioria, na perpetuação da sua condição e seu poder econômico. Viver no interior do Brasil, cenário de graves desigualdades e clientelismo, é se misturar em uma lama que não combina com os jalecos brancos de tanto distanciamento ao brasileiro comum, simples e trabalhador. Por outro lado, viver na cidade, se possível em um centro de especialidade, é símbolo de status profissional e é o que se procura reforçar entre os pares e nas faculdades.

É dessa maneira que assistimos ao desvio das atenções do público para os temas superficiais. Dois ou três anos no SUS não alterarão em nada a perseguição da corporação médica a outros profissionais que já prestam serviços de qualidade no interior do Brasil. Não alterará o currículo dos estudantes de Medicina sendo preparados para as áreas, ainda que públicas, com potencial rentável. Não alterará os volumosos recursos do fundo público para os planos de Saúde e para o investimento na doença pelo Ministério da Saúde. Não alterará, sobretudo, as desigualdades sociais, verdadeiras causadoras da mortalidade infantil, da diarreia, da desnutrição pelos interiores e grandes cidades brasileiras.

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Téo Cordeiro é sanitarista, Rio de Janeiro, RJ