Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Se não houver respostas, manifestações serão maiores em 2014’

Na chegada, Juca Kfouri já foi tranquilizando a equipe da Pública, dizendo que estava bem, e que o problema de saúde que sofreu no dia da semifinal entre Brasil e Uruguai, em Belo Horizonte, não era nada do que saiu na imprensa. “Fui vítima do sensacionalismo de alguns coleguinhas”, comentou, explicando que ficou pouquíssimo tempo sem trabalhar e que teve o apoio de ninguém menos que Tostão, tricampeão do mundo em 1970, que também é médico.

Workaholic assumido – ele é colunista da Folha de S.Paulo, da rádio CBN e do UOL e apresentador e comentarista na ESPN –, Juca nos recebeu numa sexta-feira ensolarada em seu escritório, em Higienópolis, depois de gravar uma entrevista com o filósofo Vladimir Safatle justamente sobre a “Copa das Manifestações”, diz, em referência aos protestos que ocorreram durante a Copa das Confederações.

O papo também foi além do futebol: em mais de uma hora de conversa ele falou sobre manifestações – incluindo a cobertura da imprensa – e sobre a reação dos poderosos do futebol ao que aconteceu nas ruas. E fez sua previsão para a Copa 2014: “Se não houver respostas, [a reação popular] vai ser maior do que foi”.

Como você avalia as manifestações pautadas na Copa do Mundo? Por que no Brasil elas tomaram esta proporção?

Juca Kfouri– Acho que as manifestações vão continuar porque infelizmente estão fechando as primeiras portas mais óbvias para as saídas que dêem solução. A mini-constituinte, que era uma ótima ideia, estranhamente a própria presidenta recuou dela. A ideia foi mal recebida pela mídia, mas isso não deve ser motivo para se desistir, ao contrário. Se a mídia está olhando de cara feia é bom insistir nisso. Tem uma solução criativa ali e acho que, na verdade, se mostra um medo brutal das soluções criativas que o povo eventualmente seja capaz de dar. Uma coisa que me chamou muita atenção: conversando com jornalistas estrangeiros, vi que todos eles estavam surpresos, não faziam ideia de que o Brasil fosse capaz disso. Há uma imagem distorcida do que seja o povo brasileiro. A começar pela má compreensão da ideia do homem cordial, que não é o homem cordato que baixa a cabeça para tudo. Não se está levando em conta as manifestações mais recentes da história do Brasil. Em que outro país mais de um milhão de pessoas foram às ruas pedir Diretas Já? Ou fizeram um processo de impeachment de um presidente recém-eleito, como o Collor? Além de todas as nossas revoltas regionais, que caracterizam a história do Brasil. Então acho que nesse sentido a Copa das Confederações, em alguns lugares, foi a gota d’água. A suntuosidade faraônica dos estádios padrão FIFA agrediu as pessoas. Nós não estamos conseguindo dar respostas para transporte coletivo e estamos fazendo um estádio como esse em Brasília? Ou somos capazes de fazer um estádio como o Maracanã, que custa R$ 1,2 bi, e por R$ 480 milhões damos para uma empreiteira e para um mega-empresário pagarem em 30 anos, em módicas prestações, aquilo que foi feito com dinheiro público? Então acho que isso teve um caráter de despertar a indignação. Daí termos como “escola padrão FIFA”, “saúde pública padrão FIFA”, que ainda haverá quem critique dizendo: “pera aí, padrão FIFA não porque ele exclui os pobres”. Mas as reivindicações são de escolas padrão FIFA e acessíveis a todo mundo. Então acho que não há uma razão só [para os protestos], acho que são diversas. Havia um copo cheio de reivindicações “quero que fique melhor, experimentei, sei que é possível”. Foi surpreendente? Foi. Aliás, eu acho gozado que se critique o governo que foi pego de surpresa, mas nenhum analista se autocritica dizendo que ele também não percebeu nada. E havia sinais. Greves que acontecem há anos em tudo quanto é setor nesse país, manifestações desde os evangélicos até aos que defendem o casamento igualitário, todas essas coisas estão nas ruas. Basicamente essas manifestações demonstram que as pessoas querem tudo de bom e do melhor e elas têm o direito de querer tudo do bom e do melhor. Houve uma repressão estúpida aqui em São Paulo naquele dia na avenida Paulista e aí então, aquilo que já estava efervescente, explodiu de vez.

Mas o fato é que no megaevento Copa do Mundo isso nunca tinha acontecido nessa proporção…

J.K.– Já cobri uns doze megaeventos nessa vida, entre Olimpíadas e Copa do Mundo, e nunca vi nada parecido. A coisa mais chocante que eu já tinha visto foi na Copa de 1982, na Espanha, quando jogaram Polônia e União Soviética e o pessoal do Solidariedade fez uma manifestação nas arquibancadas e a polícia, ainda resquício do franquismo, cobriu os caras de porrada. Jogou bomba e tudo mais. Era um grupo de ativistas poloneses, com faixas e tal, o que a FIFA sempre proibiu. Mas não era o povo espanhol na rua, nada disso. Eu nunca tinha visto nada parecido.

Você tem trânsito nas altas cúpulas do futebol. Como esse pessoal recebeu?

J.K.– Felizmente não tenho esse trânsito, mas fico sabendo das coisas. Mas escuta, meu, é a primeira vez que uma decisão de uma Copa dessa importância não teve cartola no telão do Maracanã. Porque já na triscada que deu do Blatter com o Marin mandando a camisa para o Mandela, o estádio começou a vaiar. Aí eles não foram nem entregar medalha, nem troféu. Foi lá o ministro do Esporte [Aldo Rebelo], que é uma figura que as pessoas mais ou menos desconhecem. Então isso dá a medida. É claro que [a vaia] é para eles. O que mais me angustia é que você tem claramente uma crise de representação no Brasil. Eu me dei conta disso no aeroporto de Fortaleza indo para Salvador, vendo nos telões o Itamaraty sendo invadido. Pensei duas coisas: primeiro, eu não vou tomar esse avião, não posso ficar duas horas sem notícia; segundo, quem é que pode no Brasil entrar no ar e dizer: “Calma aí gente, nós vamos fazer as coisas, vamos devagar, não precisa quebrar tudo”? Quem? Não tem um político. O Chico Buarque? Caetano Veloso? Dom Paulo Evaristo Arns? O Lula? Fernando Henrique? Quem? Não tinha um cara. E veja que coisa curiosa, de certa maneira com o sinal invertido. Se em 1970 se dizia que a gente não deveria torcer pela seleção brasileira porque isso era reforçar a ditadura, agora, com o povo brasileiro na rua, a seleção foi muito mais bem tratada. No que a seleção começou a jogar bem e a ganhar, isso aconteceu. E não é verdade que as pessoas que estavam no estádio eram alienadas enquanto que só eram conscientes as que estavam na rua. Porque inclusive aquela maneira de cantar o hino era um recado de amor ao Brasil. Aquilo mostrou uma sabedoria que, por incrível que pareça, a nossa intelectualidade e a nossa mídia tem medo.

E por que, se a FIFA saiu com a imagem arranhada da Copa das Confederações, isso não colou na seleção?

J.K.– Eu vou dizer uma coisa e espero ser bem entendido. A FIFA é o que ela é: uma grande multinacional, que ganha aos tubos, pouco transparente, em processo de tentativa de transformação e de limpeza tal a sujeira que emergiu dali nos últimos anos. No entanto, aquilo que o [Joseph] Blatter [presidente da FIFA] repete quase como um mantra é a pura verdade: a FIFA não pediu para ninguém se candidatar a receber a Copa do Mundo. E aí o que a FIFA exige? É óbvio que a FIFA não exige que a avenida esteja como a gente gostaria, ou que o metrô esteja funcionando plenamente. Ela quer um estádio do cacete, e o governo brasileiro topou isso. Eu cheguei a escrever isso e não tenho nenhum orgulho em poder dizer isso. O Lula teve duas vitórias extraordinárias ao trazer a Copa do Mundo e as Olimpíadas para o Brasil. Eu digo o Lula porque foi o Lula, a cartolagem do futebol ou do Comitê Olímpico Brasileiro sempre foi a mesma, os presidentes é que variaram. O Lula era o único monoglota na reunião do Comitê Olímpico Internacional. Ele falou depois do Obama, em português, e ganhou todo mundo. Então eu escrevi o seguinte: ele trouxe não somente os dois maiores eventos esportivos do mundo para o Brasil, mas os dois maiores eventos do mundo para o Brasil. Mas corre o risco desse tiro sair pela culatra, de serem dois fracassos megalomaníacos como esses eventos. E está acontecendo isso.

Fazendo um paralelo com as Copas de 50 e de 70 que tiveram motivações políticas claras. Na Copa atual também há a motivação política de se vender um novo Brasil?

J.K.– Se há um discurso que eu repilo veementemente, porque é o discurso do João Havelange, é que futebol e política não se misturam. Todo evento desse porte tem a ver com política. A Espanha pós-Franco se vendeu grandemente na Copa de 82 e mais ainda nas Olimpíadas de Barcelona, em 1992. Foi ali que a Espanha moderna apareceu para o mundo. A Alemanha unificada fez a festa que fez em 2006 para mostrar para o mundo que a Alemanha não era aquela imagem soturna do cinema americano, em preto e branco, em que alemão não sorria. Então no Brasil não teria porque ser diferente. A tentativa de se vender a ideia de que futebol e política não se misturam é a maneira mais política de você transar o futebol. Por que sir Havelange, com esse discurso, convivia com os Videla, com os Médici, com os tiranetes da África, com o que há de pior. Então o cara era um facínora, mas ele dizia que não tinha nada a ver com isso porque ele estava tratando de futebol. Não existe essa dissociação: as conquistas esportivas são apropriadas por qualquer governo em qualquer lugar do mundo. O time americano ganha medalha de ouro nas Olimpíadas e é recebido na Casa Branca. O time de baseball de Cuba volta campeão mundial, é recebido em praça pública pelo Fidel Castro. Mas tem outro bom exemplo. É claro que a ditadura tentou se apropriar da vitória em 1970; não obstante, o Médici não entrou para a história como o presidente que foi tricampeão do mundo. Entrou para a história como o presidente do período de mais tortura no Brasil. Quem entrou para a história como tricampeão do mundo foi o Tostão, o Pelé, o Rivelino, o Gerson. Não subestime a capacidade de compreensão do povo. Não houve desumanidade autoritária maior na recepção de uma Seleção Brasileira campeã mundial como no governo Fernando Henrique. O time vinha da Ásia, depois de 24 horas dentro de um avião, e em vez de o presidente cumprimentar um por um, dar uma medalha e mandar o time para casa descansar, puseram os caras num carro de bombeiros para desfilar sete horas antes de chegar ao Palácio do Planalto. Daí o Vampeta dar cambalhota. É claro, a única coisa que ele poderia fazer era encher a cara no trajeto. Se é um general que faz aquilo, a gente estaria reclamando até hoje. Mas não, foi um governo democrático, de um professor de Ciências Sociais, que teve a insensibilidade de submeter os caras a isso. E passou em brancas nuvens, ninguém achou nada de mais. É absolutamente inevitável que um governo, seja ele de que cor for, se aproprie das vitórias esportivas que estimulem o espírito nacional.

Mas as manifestações subverteram essa propaganda?

J.K.– Por um lado podem ter subvertido, diante de uma visão conservadora. Diante de uma concepção mais de vanguarda, não. Elas mostraram a pujança do Brasil. Que país vivo é esse? Ou você não acha que o Brasil vai ser um país melhor depois disso tudo? Junho de 2013 marca um momento na história do Brasil, daqui a 50 anos vai se falar disso. A minha preocupação nesse momento é apenas de ver a nossa elite fechando portas para soluções de baixo, as soluções que vem da rua. Se fizer isso, vai pegar fogo. Porque primeiro: eu adoro aquele cartaz que diz “cidade muda não muda”. Segundo: você não conhece na história da humanidade nenhuma transformação que não tenha sido feita com alguma violência. Há evidentemente uma polarização. Estão aí os evangélicos na rua, dando demonstrações. É natural que haja uma resposta a isso. Nego parece que não se dá conta da gravidade. Porque em pleno fogareiro o presidente da Câmara [Henrique Eduardo Alves, do PMDB-RN] pega um avião da FAB e vai ver a final na Maracanã, não é possível. Não é possível que ele não tenha cuidado com o próprio pescoço.

E as manifestações já tomam, em alguns casos, um viés de personalizar as críticas. Como os acampados na frente da casa do governador do Rio…

J.K.– É isso. Por que na casa do Sérgio Cabral e não na do Alckmin, ou do Aécio, ou do Anastasia? Porque o caso da privatização do Maracanã foi mais gritante do que os outros. Porque quiseram demolir o estádio de atletismo Célio de Barros, a escola Friedenreich, o Museu do Índio, e a Copa das Confederações mostrou que não precisa. Eu fui de metrô para o jogo, numa boa. Saí de Copacabana às 5 horas, e em 20 minutos estava dentro do Maracanã. Então ficou muito gritante. Nego está dizendo para ele: “Você não me engana mais e eu vou ficar aqui na frente da sua casa te incomodando”. Agora, você vê como são as coisas engraçadas. Todos nós somos a favor do direito de ir e vir, inquestionável. Todos nós preferimos que não haja excessos, nem quebra-quebra. Mas uma semana antes de começarem as manifestações de rua, os produtores rurais fecharam estradas no interior do Brasil e não aconteceu nada. Ninguém falou do direito de ir e vir. Não mandaram a PM. Aliás é outra questão que está posta em cheque, enfim: precisa acabar essa merda. Isto aí é fruto da ditadura. Polícia militar é para policiar região fronteiriça, região em que haja conflagração, é uma polícia que trata oponente como inimigo para aniquilá-lo. Não é para por em meio à segurança pública. É sabido isso. Não são poucos os pedidos da ONU para acabar com a PM no Brasil.

E depois do que aconteceu na Maré, no Rio de Janeiro, essa questão está ainda mais colocada…

J.K.– Sim. Porque é isso: eles vão para a guerra. A postura deles não é outra, a postura é de guerra. Você é inimigo para eles. Quem vai a campo de futebol sabe disso. Quer dizer, para organizar uma fila para compra de ingresso eles jogam o cavalo em cima da torcida. Aí você fala: “Ah, mas o torcedor é violento”. Mas como é que você acha que o cara vai entrar em campo? Uma faísca já vai pegar fogo. Eu sempre digo isso: trate o torcedor feito gado e ele vai se comportar feito um animal.

O David Luiz, o Hulk e o Fred se posicionaram claramente a favor das manifestações de rua. Você acha que há realmente uma empatia da seleção com isso ou foi mais um jogo de cena?

J.K.– Qual é a origem desses caras? Todos têm origem popular, convivem ou conviveram com essas dificuldades. Todos eles se ressentem das dificuldades que passaram na profissão pelas dificuldades educacionais a que foram submetidos. Não era para esses caras terem chegado nos lugares onde chegaram pelo menos sabendo falar inglês? Como um menino japonês, francês ou americano? Eles suam para aprender outra língua porque têm esses problemas de formação. E eu acho que a resposta deles não é a toa. Quantos jogos o Brasil fez gol em menos de cinco minutos de jogo? Aquela maneira de cantar o hino era a melhor resposta às ruas que eles poderiam dar.

Na coletiva de balanço da Copa das Confederações, o Ronaldo declarou apoio às manifestações como se ele e as pessoas que estavam ao lado dele não fossem alvos nas manifestações contra a Copa. O que você achou?

J.K.– Ronaldo é um desastre. De duas uma: ou ele se faz de bobo, ou ele é realmente uma pessoa muito limitada. E eu acho que limitado ele não é; e não entender todos os conflitos de interesse que hoje ele representa ao comentar futebol na TV Globo, é absolutamente incompreensível. Ele me ligou um dia, dizendo que eu estava enganado ao dizer isso. E eu respondi: “Mas Ronaldo, você vai criticar o Neymar [agenciado pela Nine, empresa de Ronaldo] que você representa? Você vai falar que o estádio está uma porcaria quando você é membro do COL?”. E ele: “Ah, eu vou, porque na minha vida eu sempre falei as coisas…” E eu: “Você não vai.” E de fato ele não está falando. Ele é capaz de cometer infelicidades como a frase de que Copa do Mundo se faz com estádios e não com hospitais. Bom, muito bem. Agora arque com isso. Ele disse uma coisa que eu concordo: que se não se tivesse colocado essa dinheirama toda nos estádios, não está dito que esse dinheiro seria melhor empregado em outras áreas. É verdade. Mas há certas coisas que um homem público guarda para si, principalmente num contexto como esse. Ele não pode dizer isso que porque está dizendo que não está preocupado com os hospitais. E aí não tem nuance. É preto e branco. Ele é de uma infelicidade a toda prova. A exemplo do Pelé, ele é mais um que, como se diz, calado é um poeta.. Veja que coisa maluca: esse cara que nada parecia pegar nele, que conseguiu sobreviver num país conservador e preconceituoso como o Brasil ao episódio dos travestis, se ferrou no discurso social. Tá ferrado. Não pode aparecer, ficou recluso no hotel em Salvador. Não é que ele não poderia sair porque iam pedir autógrafo para ele, ele corria o risco de apanhar.

E você acha que a experiência brasileira pode criar uma cultura de resistência à FIFA em eventos futuros fora do Brasil?

J.K.– Eu acho que sim. Acho que a FIFA não vai conseguir desfazer essa imagem por injusta que ela possa ser. Pegou na FIFA porque é fácil. E ela vai padecer com isso. Eu vi tirarem a bandeira da FIFA da frente do hotel Copacabana Palace, tal o medo que eles estavam. As viaturas FIFA desapareceram porque eram apedrejadas. Agora: não foi à toa que a última Copa do Mundo foi na África do Sul, em seguida no Brasil, a próxima vai ser na Rússia e em seguida no Catar. Esses países foram escolhidos a dedo. O que tinha de comum nesses países todos? Pouco controle social. O Brasil surpreendeu, mas é improvável que aconteça na Rússia. Improvável, mas pode acontecer. Também ninguém diria a um tempo atrás que aconteceria no Egito o que está acontecendo. Mas esta má imagem não vai se limitar ao Brasil.

E como você avalia a cobertura da imprensa da Copa das Confederações e das Manifestações?

J.K.– A TV aberta é um horror. É a coisa mais acrítica possível. E está pagando o preço por isso. Não sei até quando. Por exemplo, eu acho que a cobertura exagerada dos vândalos vai ter um preço porque não é possível que isso prevaleça. Porque o comportamento pacífico de milhões de pessoas é muito mais chamativo do que os eventuais quebras-quebras feitos pela minoria. Não adianta tentar se apropriar da vitória esportiva como sendo da televisão, porque não é. É do Neymar, do Fred… E a Globo tenta se apropriar, sem dúvida. Mas você vê. O pobre do Galvão Bueno não pode aparecer porque é vaiado, xingado. Porque é o estereótipo. Quando você compra um evento esportivo, você não se torna sócio do cara que te vendeu o evento esportivo e o comportamento da TV Globo é de sócio. As grandes redes americanas de TV resolveram isso há anos: elas têm um departamento de eventos e um departamento de jornalismo. É claro que o departamento de evento doura a pílula do seu evento. Outra coisa é o Jornal Nacional de cada uma dessas redes dizer que o hambúrguer estava frio, que a cerveja estava quente, que faltou ingresso, que o trânsito não fluiu bem, que o jogo foi ruim. Ou não. Que foi tudo bom, que tudo funcionou. A Globo não tem esse balanço. Eu criei até um jargão para isso. A confusão entre jornalismo e entretenimento na TV Globo chegou a tal ponto que a Globo “leifertizou” [referência ao apresentador e editor do programa Globoesporte de São Paulo, Tiago Leifert] a sua cobertura esportiva. E eu não tenho nada contra o menino, é um excelente comunicador. Mas eles apalhaçaram a cobertura. E para quê? Para não mostrar aquilo que está por baixo dessa bandidagem. Não me venha dizer que se surpreenderam com o Ricardo Teixeira fugindo do Brasil. Não me venha dizer amanhã que se surpreenderam com o José Maria Marin. Está dito inclusive na rádio CBN, onde eu trabalho: a apropriação de um terreno público, a questão da ditadura, do Vladimir Herzog, do elogio ao Fleury, da medalha que ele roubou e a própria TV Globo mostrou. Como é que a Globo pode tratar esse cara como se fosse uma pessoa séria?

Em abril do ano que vem tem eleições para a presidência da CBF e tudo indica que o novo presidente será Marco Polo Del Nero, presidente da Federação Paulista de Futebol e muito ligado ao Marin. Você acha que as manifestações podem injetar um pouco mais de turbulência nesse processo eleitoral?

J.K.– Tomara que sim. É um desejo mais do que qualquer coisa. Mas acho que a última coisa que vai mudar no Brasil é a superestrutura do futebol. Porque ela é extremamente corruptora, corrompida, e mais do que conservadora, ela é reacionária. Ela é contra qualquer tipo de mudança. Eu acho que o negócio futebol é bom demais para continuar na mão dessa gente, uma hora começa a mudar. E eles estão assustados. Lembre-se da primeira reação do Marco Polo Del Nero que disse que milhões estavam trabalhando enquanto outros poucos estavam nas ruas. No dia seguinte ele já estava que nem avestruz colocando a cabeça embaixo da terra porque não podia aparecer.

E as eleições da FIFA, qual é o cenário?

J.K.– O Blatter vai ser candidatíssimo de novo e vai se reeleger. Você verá.

E as manifestações bateram de que maneira na alta cúpula da FIFA?

J.K.– Eles ficaram muito assustados, tiveram medo de gente deles morrer, pensaram em suspender a Copa das Confederações. Em Salvador, eles tiveram funcionários agredidos, carros depredados. O Blatter foi embora. Ele tinha um almoço marcado aquele dia com o Eduardo Campos [governador de Pernambuco] e com o prefeito do Recife e se mandou para a Turquia, pô, que estava pegando fogo, mas ele preferiu a Turquia do que ficar aqui. Aí quando o governo deu a resposta que eles esperavam, com Força Nacional nas ruas e tudo mais, ele veio. Veio e não foi anunciado nem no Mineirão e nem no Maracanã. Passou quase incógnito.

E como você avaliou a cobertura das redes sociais e dos veículos não tradicionais das mesmas manifestações?

J.K.– Eu gosto muito do cartaz que diz “Saímos do Facebook”. Porque fazer manifestação em rede social é fácil, queria ver na rua, to vendo, ótimo. Essa molecada na rua está fazendo coisas que a minha geração não conseguiu fazer. Nós fizemos passeata, fizemos o diabo a quatro para derrubar a ditadura e não foi por aí que a ditadura caiu. Mas essa manifestação e a desregulamentada que se deu no Brasil esses dias é um negócio seríssimo. E aí eu pergunto: é essa a tal geração que só é voltada para o próprio umbigo, que todo mundo me dizia que só pensava na própria carreira, que era despolitizada? Eu fui dando toda a agenda de todas as manifestações e vou até te contar um episódio divertido. O Brasil estreava num sábado, contra o Japão, em Brasília. Eu precisava pegar o meu ingresso um dia antes, no centro de imprensa, na frente do estádio. O meu hotel estava a uns 40 minutos dali e resolvi ir a pé. Aí eu começo a minha caminhada naquelas avenidas de Brasília e de repente começo a ver aquela fumaça preta. Aí eu pergunto para alguém na rua o que estava acontecendo e me dizem que o pessoal estava queimando uns pneus, que estava tendo uma manifestação aí. Aí eu digo: “É claro, estava prevista para sexta, dez horas da manhã, na frente do Mané Garrincha uma manifestação”. E eu tinha até posto no blog. Quando cheguei lá, os manifestantes me reconheceram e disseram: “Que legal, você veio aqui e tal…” E eu: “É, é, vim”. Vim o cacete, tava de calção e o escambau, nem tinha me lembrado. Aí de tarde eu vejo o secretário de segurança do DF dizendo que foi pego de surpresa e um cara da ABIN dizendo que o secretário de segurança estava mentindo porque a ABIN tinha alertado que havia uma possibilidade de manifestação naquela manhã. Aí eu dei uma nota dizendo que estavam mentindo ambos, ou despreparados ambos, porque bastava olhar a agenda que está até publicada no meu blog que havia um ato marcado, não era possibilidade. Era inadmissível que o secretário de segurança não soubesse e que a ABIN tratasse como possibilidade. Essas coisas que eu digo que eram óbvias que iriam acontecer. Ainda mais num governo dito popular, com a violência das remoções se dando como se deu, você achar que não ia ter nego queimando pneu, puto. Eu tive uma discussão com o Aldo, ele ficou puto porque eu disse que isso era coisa do nazi-fascismo, mas eu falei: “Aldo é o seguinte: marcar uma casa e passar no dia seguinte com uma máquina em cima da casa, tá bom, não é o gueto de Varsóvia porque não está se pegando ninguém e colocando na câmara de gás, mas, porra, você quer que eu chame isso do quê?”

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Ciro Barros, Bruno Fonseca, Renato Leite Ribeiro, da Agência Pública