(…) Charles Bukowski, mais do que qualquer outro escritor da nossa contemporaneidade, nos lembra de quão sintéticas são nossas noções sobre o que seria uma “boa” ou uma “má” literatura; desapontando assim muitos críticos que ainda se acham detentores do poder de “professar” a qualidade de uma obra. Ocorre que, por outro lado, um discurso que antes era visto como marginal, e aqui a palavra significa justamente estar à margem, no entanto, pode ser euforizado pelos leitores e escritores, que, igualmente, veem em Bukowski qualidades de uma “alta” literatura. (ALONSO, Fabiano Garcia Baltazar da Silva. A Imperfeição em Charles Bukowski 2006, p. 49).
Aproxima-se de cinquenta mil o número de pessoas que curtem a poesia, a prosa e mesmo trechos da obra de Charles Bukowski no Facebook. A popularidade do escritor nascido na Alemanha cresceu acentuadamente neste ano entre os jovens usuários de redes sociais da internet no Brasil. As frases mais compartilhadas são de cunho sexual e misantropo. E o que isso tem a ver com o que acontece no Brasil?
Charles Bukowski nasceu em 1920, filho de um soldado do exército estadunidense e de uma jovem e pobre alemã. Mudou-se ainda criança, depois de findada a Primeira Guerra Mundial, para os Estados Unidos, mais precisamente para o subúrbio da grande Los Angeles, uma área economicamente frágil e cercada por pouca perspectiva de melhora – hoje o conceito é questionável tanto aqui quanto lá, mas nos limitemos a uma noção superficial das localidades supracitadas.
A sexualidade em protestos
Bukowski teve problemas de espinhas e de crescimento durante a infância. Sem popularidade na escola via seu pai fingir que ia todos os dias para o trabalho apenas para os vizinhos não comentarem do desemprego que, afinal, era real na vida da maioria dos americanos pouco depois da crise de 29. Ele pegou a transição econômica, mas não social, pós-crash. No Brasil, os novos adultos, maioria absoluta que foi às ruas durante o mês de junho, cresceu nas mesmas condições de Bukowski. Cresceram em um período de transição do pós-Collor à consolidação do PT no governo e a imagem de uma classe média ampla e consolidada.
A obra de Bukowski é um emaranhado de reclamações, de descontentamentos com a sociedade, com as pessoas, com a qualidade de vida oferecida pelo Sistema e com o Sistema em si que o obrigava a frequentar a escola e a conseguir um emprego de oito ou mais horas por dia para seguir o roteiro escolhido por alguém, de quem ele também reclamava. Erra, portanto, quem pensa que Bukowski ignorava o que considerava errado em sua volta. Ele poderia ser visto facilmente em meio aos protestos ou escrevendo contra os manifestantes se fosse contemporâneo ao Movimento Passe Livre e suas subdivisões, só para ficarmos no exemplo maior.
O escritor alemão tem mais paralelos com os manifestantes, não se engane. Ignorado – no Brasil, até hoje – pela academia, Bukowski usou sua literatura, arte amplamente analisada pelos teóricos de ciência humana, para elevar-se a condição de referência. A maioria absoluta dos líderes do MPL, por exemplo, são estudantes de universidades públicas brasileiras, angariados à classe média ainda na adolescência. É óbvio que há outros tipos de perfis em meio às milhares de pessoas que participaram ativamente das manifestações de junho, assim como os escritores comparáveis a Charles Bukowski levando em conta o estilo de narrativa também tinham origens diferentes. A geração beat de Jack Kerouac ou Allen Ginsberg tinha gente de diferentes origens sociais, alguns de famílias tradicionais. A sexualidade em protestos pode ser visto através do mal-fadado Femmen pelo mundo que no Brasil perdeu a chance de se destacar ou até mesmo de ganhar novas apoiadoras em época de povo nas ruas após desentendimento entre as integrantes daqui e de lá.
Interno x externo
As pessoas que foram às ruas com cartazes de diferentes conteúdos, aparentemente, buscam melhorias para elas mesmas e para os iguais. A leitura da obra de Charles Bukowski deixa claro que para ele o problema estava na essência, de dentro para fora ao contrário do que pregava os cartazes de que uma mudança no mundo mudaria as pessoas que estão no poder.
Se os manifestantes têm argumentos precisos na revogação do aumento dos vinte centavos que tendem a ficar como exemplo para o futuro próximo, um fato deixa claro que o problema era mesmo muito maior do que os vinte centavos. A primeira morte de um manifestante em ato organizado foi em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. A ocorrência nada teve a ver com autoridades ou polícia. Na noite do dia 20 de junho, o empresário Alexsandro Ishisato de Azevedo, de 37 anos, não concordou em ter que desviar o caminho para o grupo de manifestantes passarem e acelerou atropelando o estudante Marcos Delefrate, de 18 anos, que morreu no local, em área nobre da cidade de 600 mil habitantes. Em entrevista seguinte aos acontecimentos, o empresário culpou uma possível Síndrome do Pânico pelo ato desmedido. O problema estava na essência.
“(…) ganhando ou perdendo, vai acabar mesmo. E como uma porção de coisas boas e ruins. A história da humanidade é muito lenta. Eu, por mim, prefiro assistir de camarote” (BUKOWSKI, Fabulário geral do delírio cotidiano – ereções, ejaculações e exibicionismos – Parte II 2007, p. 95).
O gigante que acordou
Bukowski morreu de câncer em 1994. Escolheu como enxergar o mundo, não como viver. Os jovens que vão às ruas hoje escolheram ir. Ninguém foi obrigado até onde sabemos a se enrolar a bandeira nacional e pedir benefícios que, como o cancelamento do aumento da passagem do ônibus, são apenas simbólicos. A maioria das pessoas que reclamava paga metade do valor, mas isso não importa. O que importa é que muita gente tem escolhido a rua num movimento contrário à inércia que a internet ajudou a plantar nas mesmas pessoas que passaram pelas dificuldades quando crianças e pelo elevador da falsa estabilidade da classe média. A mudança de ares pode, consequentemente, mudar algumas estruturas que antes pareciam sólidas. Bukowski estava para a academia da mesma forma que o povo está para o Sistema atualmente: uma ameaça real ao que todos indicavam certo.
Para o filósofo francês e contemporâneo de Bukowski Michel Foucault a relação do individuo com o Estado ou com a sociedade que o cerca poderia resultar em criação na mesma proporção que poderia oprimir, caberia ao individuo usar uma coisa ou outra, o que Foucault chamou de relação “poder-conhecimento”. Conceitos aplicados tanto para Bukowski quanto para os textos de cartazes mais esclarecidos expostos pelo país durante as dezenas de passeatas.
Enquanto Bukowski escancarava a América que ninguém via encoberta pela propaganda do American Drem, o povo foi às ruas mostrar algo que todos já tinham esquecido sob a alcunha de gigante que acordou.
Referências bibliográficas
ALONSO, Fabiano Garcia Baltazar da Silva. A Imperfeição em Charles Bukowski. 2006. Relatório Final de Iniciação Científica do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo.
BUKOWSKI, Charles. Cartas na Rua. Porto Alegre: L&PM, 2011.
______. Fabulário geral do delírio cotidiano: ereções, ejaculações e exibicionismos parte II. Porto Alegre: L&PM, 2007.
______. Factotum. Porto Alegre: L&PM, 2007.
______. Mulheres. Porto Alegre: L&PM, 2011.
______. Misto Quente. Porto Alegre: L&PM, 2005.
______. Hollywood. Porto Alegre: L&PM, 1990.
______. Pulp. Porto Alegre: L&PM, 1995.
FOUCAULT, Charles. Ditos e Escritos II – Arqueologia Das Ciências e História Dos Sistemas de Pensamento. São Paulo: Forense Universitária, 2013.
______. Tradução Salma Tannus Muchail. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas – 8ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1999.
______. O que é um autor? Lisboa: Passagens/Vega, 2002.
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Wolfgang Queiroz Pistori é jornalista, Ribeirão Preto, SP