Revendo ontem uma entrevista com o filósofo Luc Ferry, percebi o quanto seria oportuno para o país escutar suas palavras neste momento. Tratava, dentre outros temas, da indignação, lembrando que a própria palavra é sintoma do seu mal: crer que somos demasiado dignos e que o outro não o é. A despeito da indisposição do filósofo com a indignação acredito que ela é, até certo ponto, um sintoma saudável de que nosso grau de intolerância ao mal feito continua vigoroso, que nem tudo é relativo e indiferente, que não somos passivos e apáticos. Mas, concordo com o fato de que “a indignação é um sentimento que se deve saber superar. É preciso passar logo a outra coisa. Deve ser uma pequena faísca, nada mais do que isso”. Essa frase me deixou pensando: soubemos superar a indignação no Brasil? Infelizmente, creio que não. Fui uma entusiasta da reação dos brasileiros, mas hoje me sinto decepcionada com a condução do debate, ou melhor das indignações. As pessoas continuam a atacar, mas não a propor. E quando as propostas surgem logo são desqualificadas. Adotou-se uma postura de “recusar por recusar”, como disse sabiamente minha colega, a professora Cicélia Pincer.
Percebi que isso aconteceu com a proposta do plebiscito. Eu não votei em Dilma e de fato não gosto do que o PT se tornou, mas me surpreendi com a sua coragem, como enfrentou de imediato o tema. Propôs e, ainda assim, foi e é alvo de uma infinidade de críticas, especialmente por ter sido “precipitada”, quando na verdade respondia, com respeito e rapidez, aos manifestantes – ao contrário do silêncio prolongado de Lula no caso do mensalão. Suas propostas foram enfraquecidas pela série de ataques que sofreu, ficando praticamente isolada (mesmo diante dos integrantes do seu partido). Com isso, o Congresso se viu desobrigado a atender suas propostas. A meu ver, o plebiscito não se reduziria a responder cinco ou mais perguntas. Seria uma boa oportunidade para abrir um amplo debate sobre a Reforma Política para o qual os brasileiros se demonstram preparados e não deixar que as mudanças ocorram à nossa revelia.
Outra proposta de Dilma também foi deformada rapidamente pelos congressistas, a dos royalties do petróleo (a presidenta propôs destinar 100% para a educação). “O repasse caiu de R$ 279,08 bilhões para R$ 108,18 bilhões. No caso da educação, o porcentual diminui 53,43%: de R$ 209,31 bilhões para R$ 97,48 bilhões. Na saúde, com a redução de 84,7%, o valor despenca de R$ 69,77 bilhões para R$ 10,7 bilhões” (Estado de S.Paulo).
Épreciso mudar a atitude
Na Argentina, onde moro no momento, por exemplo, fomos também às ruas em quatro oportunidades, mas Cristina ignorou o movimento, desqualificou-o e nada mudou. Ainda que os congressistas brasileiros tenham também reagido “positivamente” a algumas indignações da rua, creio que a boa vontade é esporádica. Para que se torne contínua, é preciso que as pessoas participem do processo político através dos instrumentos de participação direta (plebiscito, referendo e projetos de lei de iniciativa Popular).
Sobre esses últimos uma conquista está sendo igualmente desqualificada pelos indignados, a assinatura digital, que tramita para ser aprovada. A PEC “reduzirá para a metade o número de adesões de eleitores necessárias à apresentação de um projeto de lei de iniciativa popular. O total de assinaturas exigido para que um projeto de lei de iniciativa popular possa ser aceito e tramitar no Congresso, segundo o texto, cairia do atual 1% do eleitorado nacional para 0,5% – de 1,4 milhão para cerca de 700 mil pessoas. A proposta abre, além disso, a possibilidade de se coletar assinaturas pela internet, o que tende a tornar-se bem mais fácil levar adiante tais iniciativas. O texto segue agora para a Câmara”. Mas, já há críticas dos que dizem que nem todos têm internet e que isso seria uma medida classista…
Primeiro a assinatura eletrônica não excluí a convencional, pode ser somada a ela. Por isso, não impede que todos que tenham ou não acesso à rede participem e assinem. Não contemplar a eletrônica seria, a meu ver, um retrocesso histórico. Temos de acompanhar o nosso tempo, usar as conquistas tecnológicas a nosso favor para facilitar e incentivar a participação direta e semi-direta. Para se ter uma ideia apenas uma (1) Lei de Iniciativa Popular foi realizada no país – o Ficha Limpa. Prova de que o sistema atual inviabiliza e dificulta a participação. As leis têm que acompanhar as mudanças sociais, dentre elas incluir o universo digital, que torna-se rapidamente um espaço inclusivo e massivo.
Mas, é preciso também mudar a atitude. Ultrapassar o jogo de indignações e as barganhas de classe e partidos. Hoje penso como deve ser difícil ter propostas de fato positivas e colocá-las em prática diante de tantos indignados (e interessados). De fato, “temos muito mais necessidade da inteligência e da coragem do que da indignação” Luc Ferry.
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Isabelle Anchieta é jornalista, professora universitária, doutoranda no curso de Sociologia da USP e mestre em Comunicação Social