Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Nem toda loucura tem seu método

Se o cérebro fosse um planeta e os neurônios cidadãos, ele teria 200 bilhões de habitantes interligados por alguns trilhões de caminhos de comunicação entre eles. Pela própria natureza complexa desse órgão, é natural que existam inumeráveis formas de as coisas darem erradas. Quando elas saem muito fora dos eixos, as pessoas que ainda conservam algum grau de sensatez procuram o profissional especializado, o psiquiatra, buscando ajuda para sair do buraco, seja ele de uma rasura banal ou um profundo abismo. Nesse caso o diagnóstico convincente do tormento que aflige o paciente é o primeiro e mais fundamental passo. Mas como cada pessoa tem suas esquisitices, os sintomas podem variar tremendamente. Além disso, a própria cabeça do psiquiatra costuma fazer julgamentos subjetivos.

Para organizar a bagunça que se tornou a psiquiatria, em 1952 os profissionais da área começaram a compilar um Manual estatístico de diagnósticos de desordens mentais, numa tentativa de construir algum nível de consenso entre eles. Isso no mínimo iria tentar assegurar que uma pessoa com um distúrbio tivesse o mesmo diagnóstico se analisado por dois ou mais psiquiatras independentemente. Nas primeiras versões editadas pela Associação Americana de Psiquiatria, o manual era apenas um amontoado caótico de estatísticas com precária utilidade clínica.

Foi somente na terceira edição do manual, o DSM-III, publicada em 1980, que a obra começou a ganhar consistência e o mínimo de metodologia. Pela primeira vez o manual foi fundamentado na observação clínica sistemática dos pacientes e nos sintomas por eles reportados, em questionários padronizados. O caminho parecia ser a rota da salvação da saúde mental. Tanto que o manual passou a ser chamado, sintomaticamente, de a “Bíblia da Psiquiatria”. O que parecia ser a luz no fim do túnel, no entanto, acabou enveredando numa direção caótica, que lembra as peripécias do doutor Simão Bacamarte no livro O alienista, de Machado de Assis. Bisbilhotando os habitantes da pequena cidade de Itaguaí, Bacamarte vai encaminhado gradativamente ao hospício todos os cidadãos que ele julgava lunáticos – no auge de seu entusiasmo, ele interna dois terços dos habitantes da cidade.

A mais recente versão do DSM, a de número 5, lançada em maio passado, sem muitas surpresas, reincidiu na rota confusa, extinguindo alguns distúrbios e criando novos. Não se pode argumentar que foi um trabalho apressado: a comunidade dos psiquiatras levou quase 15 anos debatendo os critérios dos distúrbios mentais, com o custo de 25 milhões de dólares, financiados pela Associação Americana de Psiquiatria. O DSM-5, que vai ser vendido em todo mundo, custa 133 dólares o exemplar. Nas suas 947 páginas estão descritas as definições estatisticamente consensuais de quase 300 patologias. Pode parecer pouco científico, mas cada excentricidade é descrita a partir de propostas de redação, que são debatidas e votadas por um amplo colégio de profissionais da área. Cada patologia arrola os sintomas clínicos observados pelos psiquiatras, que vão desde comportamento violento até dificuldade de olhar nos olhos as outras pessoas. O que o psiquiatra observa é complementado com o que o paciente reclama, através de um questionário objetivo e padronizado.

Tal método pode ser bom para construir um consenso entre os psiquiatras, mas acaba criando confusões para os pacientes. Por exemplo, uma pequena mudança na definição do que seja a “Transtorno de Ansiedade Generalizada” pode acabar transformando em doença a preocupação até saudável com os aborrecimentos prosaicos da vida diária. E então a pessoa sai do consultório com uma receita de medicação ansiolítica controlada para tolerar melhor um medo que pode ser normal frente às incertezas inevitáveis da vida.

O DSM-5 trata agora o luto de mais de alguns meses como “Transtorno Depressivo Maior”, que merece a receita de antidepressivos. Assim, o sentimento de perda de um ente querido, algo completamente normal, superado tradicionalmente pelo consolo dos familiares, amigos e o passar tempo, pode ser substituído por pílulas com muitos efeitos colaterais.

Valência negativa

Os pequenos esquecimentos e lapsos de memória dos idosos, mais do que naturais, agora podem ser rotulados como “Transtorno Neurocognitivo Brando”, para o qual não há medicação. Serve apenas para criar ansiedade e medo irracional da demência. Outra inovação polêmica do DSM-5: a tradicional birra infantil e adolescente agora foi carimbada como “Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor”.

As edições anteriores já haviam tachado as crianças agitadas como vítimas do “Déficit de Atenção e Hiperatividade”. Algumas dessas pestinhas que aparecem nas melhores famílias realmente precisam de medicação, mas na última década houve um abuso na quantidade de receitas para crianças inquietas, desde que o DSM liberou a Ritalina, medicação que milagrosamente transforma em anjinhos tais fedelhos.

Embora o lançamento do DSM-5 tenha repercutido bastante na imprensa brasileira, uma pesquisa recente com psiquiatras tupiniquins revelou que apenas cerca de 10% adotam o DSM na rotina clínica. A grande maioria dos profissionais brasileiros usa a Classificação Internacional de Doenças (CID), manual patrocinado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que está na sua 10ª versão e que vai ter a 11ª publicada em 2015. Basicamente, os critérios não diferem muito entre os dois manuais, mas existe a vantagem da CID ser mais adaptada a diferentes países e especificidades culturais.

Um dos coordenadores do trabalho de discussão e revisão para a CID-11, o psiquiatra Jair de Jesus Mari, do departamento de psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), acha que a CID-11 não vai se sair muito melhor que o DSM. “Os dois sistemas classificatórios utilizados para o diagnóstico dos transtornos mentais são baseados na descrição de sinais e sintomas”, explica ele. “Muito provavelmente essas descrições não refletem os distúrbios neuroquímicos subjacentes e, pelo contrário, podem dar a falsa impressão de que estamos tratando de uma determinada condição verdadeira definida. Por exemplo, no caso da depressão estamos falando de uma síndrome com etiologias diferentes. Quando estamos tratando esta síndrome podemos estar lidando com problemas diferentes, o que pode explicar o fato do tratamento não ser efetivo em todos os casos. As pesquisas atuais revelam que os transtornos mentais se relacionam com distúrbios dos circuitos e sistemas cerebrais, que sofrem forte influência da genética e da epigenética”.

Quando se trata de uma síndrome, na nomenclatura médica, podem aparecer muitos sintomas diferentes, mas com uma causa comum. Ou então muitos sintomas comuns, mas com causas diferentes.

O DSM e os psiquiatras na verdade vêm sendo criticados há bastante tempo pelos psicólogos, psicanalistas e terapeutas pela prática que consideram ser uma “medicalização” dos desvios da normalidade. De fato, a normalidade tem um espectro muito amplo e fronteiras muito confusas. Com o DSM-5 a frente de oposição ficou mais ampla, incluindo até psiquiatras descontentes com os rumos da profissão.

Poucos dias antes do lançamento do DSM-5, Thomas Insel, diretor do poderoso Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA (INSM), a principal agência governamental financiadora de pesquisas sobre distúrbios da mente, voltou a criticar o manual. “Os critérios de diagnóstico carecem de validade baseada em medições objetivas como acontece na medicina, onde coisas como doença isquêmica do coração, linfoma ou AIDS estão lastreadas na biologia”. Ou seja, o psiquiatra-chefe dos EUA chegou perto de declarar que a psiquiatria é uma pseudociência, que não mereceria estar incluída no reino da medicina.

Mas o peso da autoridade do DSM é enorme. Planos de saúde só vão pagar o tratamento se a doença alegada estiver atestada no manual. E até nos tribunais os advogados podem tentar a absolvição de seus clientes se ele tiver uma conduta descrita no manual que os tornem inimputáveis.

E, pior: os diretores do INSM acreditam que o DSM cria uma camisa de força para os pesquisadores da área. É mais fácil conseguir financiamento para pesquisas orientadas por definições de doenças do DSM porque elas partem de um consenso. Na semana do lançamento do DSM-5, Insel anunciou que o INSM iria fechar definitivamente as torneiras de verbas da instituição para pesquisas fundadas no manual e buscar alternativas. “Seja lá o que for que estivemos fazendo nas últimas décadas, não está funcionando” disse ele numa entrevista. “Quando olhamos os números de suicídios, de incapacitações e mortalidade, nada está melhorando. Talvez seja necessário repensar toda a abordagem”, conclui.

Insel e outros cientistas já têm ideia do que seja essa nova abordagem, que na verdade nem é tão recente. Trata-se do projeto RDoC a sigla em inglês para Critérios para o Domínio de Pesquisa. Em vez de partir das definições de distúrbios do DSM em busca da bioquímica que poderiam ser a origem da doença, o INSM quer que os pesquisadores e cientistas partam do que já se sabe do cérebro para tentar construir modelos do que sejam as doenças mentais. Anunciado oficialmente há apenas três anos, o RDoC ainda está engatinhando, mas já tem resultados animadores.

Jair Mari explica como é esse novo paradigma: “O projeto recebeu a denominação de “Research Domain Criteria”, que pode ser traduzido como Critérios para o Domínio de Pesquisa, seguindo os princípios de uma medicina de precisão. O ponto de partida deixa de serem os sinais, sintomas e reclamações do paciente para se questionar quais os circuitos cerebrais estão alterados, que mecanismos celulares, moleculares, genéticos estariam envolvidos na desorganização destes sistemas.”

“As cinco dimensões propostas”, explica Jair Mari “ representam ‘constructos’ classicamente definidos na pesquisa psicológica, dimensões que vão buscar validação e revisão constantes. Essas são as cinco dimensões propostas:

>> Domínio de Valência Negativa (medo, ansiedade, ameaça ou perda)

>> Sistema de Valência Positiva (motivação, resposta a recompensa, recompensa).

>> Sistemas Cognitivos (atenção, percepção, memória de trabalho, memória declarativa)

>> Sistemas de Processos Sociais (Vínculo e Afeto)

>> Sistemas Modulatórios (Ritmos Biológicos, Excitabilidade)”

Assim, em vez de dirigir as pesquisas a partir de clusters ou agregados de sintomas semelhantes, como os escutados e observados pela comunidade dos psiquiatras nas reclamações semelhantes dos pacientes, o ponto de partida passa a ser os domínios ou dimensões da RDoC, que são mais fáceis de serem rastreadas até causas neurológicas e bioquímicas. Portanto a depressão do DSM está fortemente presente no domínio de valência negativa e deveria ser pesquisada junto com outras manifestações clínicas que envolvem também o medo, ansiedade, ameaça ou perda.

Escassez alarmante

Outra diferença importante do DSM com o RDoC é que as disfunções não são estanques e admitem uma variação de gradação. No DSM a depressão é depressão e pronto. No RDoC existe um espectro de gravidade de uma disfunção.

No mês passado um artigo publicado na revista JAMA Psychiatry descreveu um método científico para escolher entre a melhor maneira de tratar a depressão profunda. Usando a tomografia PET é possível distinguir se o paciente vai se beneficiar mais de antidepressivos ou da terapia cognitiva. No diagnóstico por imagem, que não depende de nenhuma interpretação subjetiva, a neurocientista Helen Mayberg, da Universidade Emory, em Atlanta, EUA, descobriu que se o nível de metabolismo numa região chamada insula anterior direita estiver acima do nível médio do cérebro, respondem melhor ao tratamento com antidepressivo e menos à terapia cognitiva. No caso contrário, se o metabolismo de glicose for inferior à atividade média do órgão, a terapia cognitiva é mais bem sucedida. Isso pode poupar o paciente de meses de tratamento ineficaz ou de ensaio e erro. O problema é que tal tecnologia ainda demora a sair dos estágios de teste e ainda é muito cara: a tomografia PET custa aproximadamente 2 mil dólares.

Na mesma linha de procurar marcadores biomédicos, o projeto Embarc (Establishing Moderators and Biosignatures of Antidepressant Response for Clinical Care for Depression), financiado pelo INSM, está analisando sistematicamente amostras de sangue de pessoas em tratamento contra depressão para tentar encontrar algum marcador que possa ser detectado em exames baratos.

Polêmicas à parte, a questão da saúde mental, talvez pelo estigma social que envolve, é extremamente grave, especialmente no Brasil, que tem um enorme déficit de profissionais especializados. Num trabalho ainda inédito sobre a escolha da psiquiatria como especialização, Mari e colegas contabilizaram que na Região Norte há apenas um psiquiatra por 100 mil habitantes, enquanto na Sudeste há 4,55 desses profissionais por 100 mil habitantes. Segundo dados oficiais de outubro de 2009 da Coordenadoria de Saúde Mental do Ministério da Saúde, a rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Brasil contava, àquela altura, com 1.467 unidades para uma população de 189.612.814 habitantes, o que significava uma cobertura de atendimento para somente 60% da população nacional.

E a situação da saúde mental no Brasil é mais calamitosa que das doenças físicas, segundo contabiliza o artigo de Mari. Os Transtornos Neuropsiquiátricos ocupam a primeira posição no espectro das doenças, com 18,8 % do total, quando a média global é de 13%. Para comparação, as doenças cardiovasculares pesam 9,6%. A escassez de psiquiatras no Brasil é alarmante. Em 2005 havia no País 3,26 psiquiatras por 100 mil habitantes, bem abaixo da recomendação da OMS, de 9 desses profissionais por 100 mil habitantes. No total seriam apenas 6.003 psiquiatras trabalhando no serviço público ou nos hospitais e clínicas particulares. A maioria dos municípios simplesmente não tem um psiquiatra.

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Psicoavatar

As tecnologias das novas televisões que mudam de canal, aumentam ou diminuem de volume, monitorando o movimento das mãos e dos olhos do telespectador podem ter uma inusitada aplicação: a de avatar psiquiatra para uso pessoal. Graças à tecnologia de câmera Kinect de profundidade desenvolvida originalmente pela Microsoft para os aparelhos de jogos eletrônicos Xbox 360. Uma pequena câmera de vídeo monitora o jogador e pode acompanhar e registrar também os mínimos movimentos dos olhos, da boca e dos músculos faciais.

O sistema, com a marca comercial SimSensei,foi desenvolvido para entrevistar pessoas e registrar suas reações mais sutis. Nos testes a engenhoca foi capaz de diagnosticar acertadamente 90% das pessoas com depressão, supondo que os profissionais humanos consigam acertar 100%. Um avatar, no caso uma psiquiatra na tela com o realismo dos filmes 3D produzidos por computador, reage conforme o comportamento do paciente e escolhe as melhores perguntas segundo a linguagem corporal dele.

Os acurados sensores óticos do Kinect conseguem detectar a direção do olhar do paciente, para registrar se ele desvia o olhar dos observadores, como fazem as pessoas deprimidas ou muito tímidas. Também monitoram os músculos ao redor dos lábios para medir o nível de sorriso ou tristeza. Outras medidas registram a postura da pessoa para decidir se ela está encolhida, agitada ou se sua fala está estressada ou relaxada. O sistema SimSensei monitora nada menos que 66 expressões faciais e corporais das pessoas.

O psiquiatra especializado humano também tem de observar todos esses detalhes no paciente à sua frente para emitir seu diagnóstico. A diferença é que o psiquiatra humano entende o que o paciente está falando e pode refinar suas perguntas dependendo da reação facial. No SimSensei o avatar não tem a menor ideia do que está sendo falado, mas tem algoritmos com perguntas pré-programadas conforme as reações do paciente. Se o avatar monitora uma expressão facial tranquila ele dá uma ligeira pausa e muda a linha de perguntas até encontrar uma que provoque, tristeza, raiva ou alegria. Os algoritmos do avatar também são programados para repetir o comportamento facial dos psiquiatras humanos, de modo a obter empatia do paciente com seu terapeuta. Evidentemente o SimSensei não está autorizado a emitir receitas de drogas de tarja preta.

Mesmo não sendo muito prudente substituir os psiquiatras humanos por avatares, o SimSensei pode ser muito útil para treinar médicos sem especialização em doenças mentais em cidades que não têm cobertura dos serviços de saúde.

SimSensei no YouTube: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=ejczMs6b1Q4#!

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Flávio de Carvalho Serpa é jornalista