Em 27/1/2012, este Observatório publicou o artigo “O cartunista fantasiado”, de Luciano Martins Costa. Até então, eu não havia ouvido falar do “caso Laerte”. Eis o que o articulista escreveu no primeiro parágrafo:
“A Folha de S.Paulo traz para suas páginas, na edição de sexta-feira (27/1) um incidente protagonizado por seu cartunista Laerte Coutinho, que desde 2010 se exibe em público vestido de mulher. Laerte não se assume homossexual, apenas se declara adepto do crossdressing, ou a prática de se vestir como o gênero oposto.”
O artigo não cita o título da matéria da Folha; até onde pude apurar, no entanto, seria “Cartunista vai à Justiça para ter direito de usar banheiro feminino”, de Natália Cancian.
Sexo e gênero não são sinônimos
Descobri depois que o “caso Laerte” já havia sido discutido antes – ver, por exemplo, a matéria “A era do pós-gênero?”, de Cynara Menezes, publicada na revista CartaCapital, em 21/9/2011. Desde então, também tenho notado que o caso e, sobretudo, o assunto (crossdressing) continuam sob a luz dos holofotes. A edição de abril de 2013 (nº 79) da revista piauí, por exemplo, publicou (com bastante alarde) o artigo “Laerte em trânsito” [acesso livre apenas para assinantes], de Fernando de Barros e Silva. Há nele uma foto do cartunista que evoca a escritora estadunidense Susan Sontag (1933-2004), um mimetismo que, penso eu, não foi acidental.
O propósito deste artigo não é analisar o “caso Laerte” ou o fenômeno do crossdressing. O objetivo aqui é mais modesto: estabelecer uma distinção entre sexo e gênero – para uma discussão mais detalhada, ver ROUGHGARDEN (2006). (O livro de Roughgarden deveria ser lido por todos os interessados no assunto, embora a versão em português deixe muito a desejar.) Esses dois termos, diferentemente do que alguns imaginam, não significam a mesma coisa e, portanto, não devem ser tratados como sinônimos. (Um mal-entendido, aliás, que aparece na matéria da Carta Capital; não sei se o mesmo problema reaparece no artigo da piauí, pois não tive acesso à versão integral.)
O sexo (macho ou fêmea) que herdamos de nossos pais segue sendo um imperativo biológico (ou quase isso), enquanto o gênero (homem ou mulher) que assumimos ao longo da vida está se tornando (cada vez mais) uma volatilidade cultural.
Homem não é sinônimo de macho
Os homens em geral pertencem ao sexo masculino, assim como as mulheres em geral pertencem ao sexo feminino. É uma correlação bastante significativa, razão pela qual, aliás, nós nos habituamos a tratar alguém do sexo masculino como “homem”, assim como nos referimos a alguém do sexo feminino como “mulher”. Mas não é uma correlação absoluta, de sorte que a distinção entre macho e fêmea nem sempre coincide com a distinção entre homem e mulher – i.e., nem todo indivíduo que se comporta como homem é necessariamente um macho, assim como nem toda mulher é necessariamente uma fêmea.
Em termos estritamente biológicos, a distinção entre machos e fêmeas tem a ver única e exclusivamente com o tipo de gameta que cada indivíduo produz – para uma discussão mais detalhada em português a respeito da variedade e evolução dos padrões de sexualidade e reprodução, ver BARNES et al. (2008).
Nas espécies animais em que diferentes indivíduos produzem diferentes tipos de gametas, o indivíduo que produz os gametas pequenos e móveis (espermatozoides) é chamado de macho, enquanto o que produz gametas grandes e imóveis (óvulos) é chamado de fêmea. Esse padrão de sexualidade, no qual os sexos estão separados, é chamado de gonocorismo (do grego, gonós, genitálias + chorismós, separação) ou dioicia. Em outras espécies animais, no entanto, os sexos estão juntos: o mesmo indivíduo é capaz de produzir os dois tipos de gametas. Nesse padrão de sexualidade, não há indivíduos que sejam exclusivamente machos ou fêmeas; todos são hermafroditos (do latim, hermaphroditus, alusão a Hermafrodito, filho dos deuses gregos Hermes e Afrodite, significando que um mesmo indivíduo é portador dos dois sexos). Minhocas e caracóis são exemplos familiares de animais hermafroditos.
Sexo e gênero podem se misturar
O fato de sermos um mamífero social acrescenta uma camada adicional de complexidade ao nosso comportamento reprodutivo. É nesse contexto que emerge a noção de gênero.
Enquanto “macho” e “fêmea” são categorias essencialmente reprodutivas (ou sexuais), “homem” e “mulher” são categoriais culturais (ou de gênero). A distinção cultural entre homem e mulher depende do papel social dos indivíduos e, cada vez mais, de suas opções. Embora homens em geral sejam machos e mulheres em geral sejam fêmeas, os papéis sexuais e, portanto, os gêneros podem estar misturados – i.e., os machos podem se parecer e agir como mulheres (“machos femininos”), do mesmo modo como as fêmeas podem se parecer e agir como homens (“fêmeas masculinas”). Certas práticas culturais, como é o caso do crossdressing, ilustram essa ambiguidade.
Até algum tempo atrás, as aspirações individuais pouco importavam; os papéis sociais eram determinados e impostos de cima para baixo, sem muita margem para discussões. Essa rigidez tem sido atenuada (há boas razões por trás disso, mas não é essa a questão aqui), a tal ponto que, em algumas sociedades, já é possível optar por um papel social diferente daquele comumente associado ao sexo que se herda. Todavia, os indivíduos que estão fazendo essas opções ainda enfrentam certas barreiras que outros integrantes da mesma sociedade não costumam enfrentar. Um exemplo trivial são as dificuldades de acesso a uma identidade civil que seja condizente com as escolhas feitas. Pense em uma mulher (i.e., alguém que na idade adulta se assume como tal) cuja certidão de nascimento informa que o seu nome de registro é “Carlos”. Mudar o nome para “Carla” (ou qualquer outro) ainda é um desafio cheio de transtornos.
Qual dos dois banheiros?
Adotar um novo nome tem a ver basicamente com uma mudança de gênero. De modo semelhante, para resolvermos com sabedoria a questão principal colocada pelo “caso Laerte” (i.e., sob que circunstâncias o comportamento individual deve ser balizado pelo sexo ou pelo gênero), deveríamos antes estabelecer certas distinções. Por exemplo, a segregação entre banheiros masculinos e femininos deve estar fundamentada em uma distinção de sexo ou de gênero? No primeiro caso, a solução é mais ou menos óbvia: o banheiro masculino seria destinado apenas e tão-somente a indivíduos do sexo masculino (i.e., machos masculinos e machos femininos), enquanto o banheiro feminino seria destinado a indivíduos do sexo feminino (i.e., fêmeas femininas e fêmeas masculinas). Todavia, se a segregação estiver fundamentada em uma distinção de gênero, a solução seria outra…
Referências citadas
BARNES, R. S. K. & outros 4 coautores. 2008. Os invertebrados: Uma síntese, 2ª edição. São Paulo, Atheneu.
ROUGHGARDEN, J. 2005. Evolução do gênero e da sexualidade. Londrina, Planta.
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Felipe A. P. L. Costa é biólogo, escritor e autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)