Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Breves impressões de um peregrino

São Sebastião do Rio de Janeiro revirou-se; irreconhecível, parecia ainda mais confuso e abalado consigo mesmo; a cidade, mobilizada, formigava. O baque não foi nada sutil: arrebatou com simpatia e surpreendeu com polêmica. Um Brasil, acostumado a abraçar todo tipo de mistura, emocionou-se ao encontrar nos estrangeiros partes de sua jovem, multiétnica e tortuosa identidade racial, religiosa e histórica. Em celebrações de fé ao mesmo tempo globais e locais, certo tipo de espiritualidade internacionalizada parece ter elevado as potências cosmopolitas da maravilhosa metrópole a níveis irrepetíveis e inesquecíveis.

Aos de fé católica, o comparecimento num evento como este se justifica em si mesmo; evento que, como qualquer Jornada Mundial, mostrou-se plural e complexo e, como toda a Juventude que se preze, não veio para esclarecer, mas para agitar, provocar e problematizar. A figura de um novo papa foi apenas um dos papéis neste imenso espetáculo participativo; e nem foi o papel principal. No silêncio ou na gritaria, sempre com personalidade forte, os jovens não encontraram muitas dificuldades para se imporem, para reivindicarem o protagonismo para si. Jovens que, orgulhosos de suas esperanças, assumiram compromissos, deixaram claro que são Igreja. Com informalidade à brasileira, os jovens mostraram também à Igreja que burocracia e declarações oficiais não condizem com a espiritualidade misericordiosa, humilde, sincera, urgente, inquieta e vigorosa que emana, à sua maneira, do coração de cada fiel.

Pareceria hipocrisia ignorar fatores políticos e econômicos inerentes à realização do evento. Para começar, ao menos, olhemos panoramicamente alguns dados: em 11/05, o jornal O Globo calculou que os cofres públicos gastariam R$118 milhões com a visita do papa; informação amplamente divulgada, replicada e rebatida na internet, justamente onde as juventudes, digitalmente, se encontram e se comunicam.

Boas provocações e sementes renovadoras

No Facebook, o dado pareceu gerar mais controvérsias que debates. Para o mesmo jornal, em 28/07: Jornada injeta R$1,8 bi no Rio. Ora, como era de se esperar, o Estado não “comprou” a JMJ porque é caridoso ou assumidamente católico. Para empresários, foi investimento e a conta fecha muito bem: de um aparente prejuízo de R$118 milhões obteve-se um montante dez vezes maior, mesmo com os quatro dias de feriado aprovados pela câmara de vereadores! Talvez, a questão a ser discutida seja: para quais mãos vai este dinheiro? O grosso, provavelmente, fica com a iniciativa privada, com as grandes empresas de transporte, hospedagem, alimentação (vide McDonald’s) etc. O Estado parece ter investido para que organizações particulares lucrassem via JMJ. Neste sentido, na visão mercadológica e dos governos municipal, estadual e federal, a Jornada não passa de turismo religioso, business, marketing; especulação neoliberal lucrativa, longe de qualquer prioridade espiritual e solidária.

Seria cínico, também, fazer vista grossa à edição especial do Manual de Bioética – Chaves para a Bioética, editado pela Comissão Nacional da Pastoral Familiar e entregue a todos os peregrinos inscritos, com direito a referências bibliográficas e introdução assinada pelo arcebispo do Rio de Janeiro. Mesmo com a intenção de informar o jovem sobre a postura da instituição acerca de questões como eutanásia, teoria de gênero, aborto e pesquisa sobre o embrião, o livreto imprime uma face reacionária da Igreja que, desonestamente respaldada, periga apoiar medidas de segregação de gênero. Faltaram na cartilha, infelizmente, comentários sobre pedofilia. Mas, ironicamente, esta não parece ser a face jovem da Igreja; mostra-se uma abordagem que tenta retirar o jovem dum ímpeto progressista, duma ânsia espontânea e criativa por inovação. Existem muitas outras faces do catolicismo que não estão aí representadas; abordagens mais inclusivas, transparentes e integradoras, como as de padre Beto, frei Betto ou Leonardo Boff, vozes e corações persistentes que devem ser lembrados por não se deixaram sufocar por um conservadorismo oficial e teimoso. Além dos pensadores, instituições como a Pastoral da Mulher Marginalizada ou a Pastoral Afrobrasileira, exemplarmente, acolhem, acompanham, evangelizam e dão assistência a segregados.

Do mesmo modo, soaria prepotente e injusto celebrar a presença da juventude católica e desprezar a pequena, mas intensa e incisiva, atuação da Marcha das Vadias durante atividades em Copacabana. Coexistindo, ambos, jovens e em pleno direito de expressão, fizeram ver um contraste interessante. Em algumas atitudes, porém, o protesto soou tão vexatório e intolerante quanto o Manual de Bioética. A Igreja praticou e pratica, sim, medidas de segregação, corrupção, machismo, violência e preconceito; mas, é ironizando a fé dos peregrinos que estas questões serão resolvidas? Será mesmo que no deboche se consegue respeito e valorização desejados? Se há orgulho na iconoclastia, porque alguns fizeram sem mostrar o rosto? Todas as juventudes devem ocupar o espaço público, devem mostrar suas ideias, seus credos, expressarem-se com o direito de serem respeitados, tanto nos ícones por uns cultuados como nas expressões sexuais e corporais de outros tantos. Sentir-se ofendido não dá, a ninguém, o direito de agredir ou ofender. Em nome da convivência e do debate sensato: é improvável que qualquer ofensa leve a algum tipo de diálogo minimamente tolerante.

A Igreja é comunidade multilateral, afetiva e de atuação pluridisciplinar, seu pensamento e sua influência não podem ser reduzidos a estigmas históricos, estereótipos grotescos de um catolicismo medieval. A JMJ faz vir à tona vetores políticos e éticos do exercício religioso, injeta novos ares na doutrina católica, atualizando-a por meio de um encontro efervescente entre diferentes pontos de vista. A JMJ pode, também, servir de matriz para que reflitamos e tomemos partido em disputas de sentido e valor na sociedade; como grande celebração de fé, não pretende gerar conflitos violentos, mas anseia lançar boas provocações, sementes renovadoras, missionárias, que busquem, na convivência com o diferente, testemunhos heterogêneos para a composição coletiva de realidades mais justas e complexas.

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Guilherme Henrique de Oliveira Cestari é mestrando em Comunicação