Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A pós-revolução orwelliana

Na hipótese bastante plausível de que os animais sejam inteligentes, e que até possam comunicar-se entre si, creio que não seria nenhum despautério imaginar que também tenham certas reações comportamentais típicas dos humanos, entre as quais preocupações existenciais. Este, por sinal, foi o mote de um de meus livros favoritos, A Revolução dos Bichos, do guru George Orwell, cujo enredo, como todos sabem, consiste numa sátira ao regime comunista da antiga União Soviética, que seduzia vários intelectuais da época. O que me leva a pensar como reagiriam os bichos diante da pândega que reina hoje em dia, e da virtual confirmação, com quase três décadas de atraso, da teoria de Francis Fukuyama, sobre o fim da história formal.

Fico imaginando o que Orwell diria sobre nossos tempos, de como a modernidade e a ética prostituída de nossos tempos condicionam a vida das pessoas, e principalmente, que conotação daria a sua fábula nos dias de hoje. Em já não estando o autor disponível, e com a devida vênia, resolvi dar minha despretensiosa versão a respeito.

Tudo começa no galinheiro de uma fazenda recôndita, por volta das cinco da matina. Os primeiros raios do sol apontam no horizonte. Uma bela manhã se prenuncia. Uma leve bruma se espalha pelo campo. O ar é fresco e límpido. Ouvem-se os primeiros ruídos matinais. Os primeiros ruídos matinais? Êpa! Algo está fora do script. E o tradicional toque de despertar do galo, que costuma saudar o dia antes mesmo do sol raiar, e que até agora, neca de pitibiriba? Terá perdido a hora? Estará doente? Ou coisa pior, partido desta para melhor?

Quem quiser tumultuar, que vá pros Black Ploc

“Quase não dormi essa noite”, respondeu o galo nefelibata à velha e fiel companheira, a galinha mais poedeira do pedaço, antes mesmo de ser questionado a respeito de seu inusitado silêncio. “Mas o que houve? Teve algum pesadelo?” “Antes fosse. Pensamentos sombrios me vieram à cabeça, desses que nos assaltam de madrugada e fazem tudo parecer pior do que é, sabe?” “Sei.” “Pois é, comecei a pensar nas coisas que estão acontecendo, na rapidez com que tudo está mudando, e cheguei à conclusão que estou, estou…” “Estou…? Desembucha logo.” “Sei lá. Acho que estou… obsoleto”, disse por fim, meio constrangido por se flagrar incomodado em proferir a palavra velho. “Obsoleto? Como assim, obsoleto?”, insistiu a galinha, sem atinar direito com o significado da palavra, mas sentindo que era algo sério, para deixar o galo velho tão acabrunhado. “Obsoleto, enferrujado, démodé, sacou?”, retrucou, algo irritado com a falta de perspicácia da interlocutora. Lerdeza, por sinal, típica da espécie, como já se sabia por Orwell.

Nisso, outros bichos foram se achegando. O pato vinha cantando alegremente, balançou o rabo e grasnou algo assim como “não esquenta, amigão. Isso passa.’’ O cachorro aduziu, balançando o rabo: “Tá osso duro pra todo mundo, chefia.”

“Mas tem nichos de mercado…” interveio o porco, para surpresa do galo. “Nichos de mercado? De onde você tirou isso, porquinho?” “Li na coluna da Miriam Leitão”. “Ah, sei. E o que mais ela disse?” “Disse que há setores em que a especialização é imprescindível, que o caminho das pedras hoje em dia é se aprimorar no que faz.” “Não sei não, porquinho. Esses entendidos costumam errar pra caramba, pois a teoria na prática é outra. Ser bom em seu oficio às vezes não basta, se a conjuntura não ajuda. Veja o meu caso, sou um galo de boa cepa, cumpridor de seus deveres, mas de que adianta se minha função perdeu o sentido? Hoje em dia é cada vez mais raro ouvir um galo cantando logo cedinho, e quando isso acontece há o risco um espírito de porco…ops, digo, algum zé Mané, querer botar a gente numa panela. Isso é broxante. Melhor ficar quietinho, se fingir de morto.” “Sábias palavras, seu galo”, consolou a coruja. “Vão-se os anéis mas ficam os dedos.” Muitas coisas inimagináveis estão se tornando obsoletas, seu galo. A própria imprensa, quem diria. Logo os jornais desaparecerão, dando lugar a edições online, o que será uma pena pois o jornalismo impresso tem um caráter atemporal que vai fazer falta. O que se ganha em rapidez e agilidade no jornalismo eletrônico e digital, perde-se em esmero e na atemporalidade que caracterizam o jornalismo escrito”. E esnobou: “Verba volant, scripta manent” – “a palavra voa, a escrita fica”. “Ichh, quer dizer que aqueles jornalões que se amontoam nas bancas estão com os dias contados ? E com o quê vão forrar minha gaiola e a dos passarinhos ? Será que ninguém pensa nisso?”, protestou o papagaio, até então estranhamente quieto. “Não fala bobagem louro, que essa imprensa marrom, sensacionalista e mercantilista não vai fazer falta. Já vai tarde!”, fuzilou o rato, animando-se a sair da toca. “A imprensa tem a mania de atacar os coitados dos políticos, vê escândalos em todos os lados só para fazer barulho, vender jornais. Se fosse verdade, por que então ninguém é preso, hein, hein ?”, completou, cofiando os bigodes. “Alto lá, ratazana. Você não tem autoridade moral para falar uma coisa dessas”, encrespou o gato, já pensando em unir o útil ao agradável, ou seja, papar o rato e ao mesmo tempo, posar de politicamente correto. “Calma aí, pessoal. Convém não esquecer que mesmo aqui no celeiro, estamos numa democracia, e todos tem o direito de opinar. Quem quiser tumultuar, que vá fazer parte dos Black Ploc, protestar na Paulista ou em frente à casa do Sérgio Cabral. Nós, bichos, temos que ser civilizados, não podemos nos deixar influenciar pelos maus exemplos dos humanos. Posso estar obsoleto, fora de moda, enferrujando com a falta da prática, mas, anotem aí: aconteça o que acontecer, nós os galos, temos uma imagem a zelar.”

Certas coisas não mudam

Dito isto, o celeiro ficou em polvorosa, a bicharada entrou em transe, e até a possibilidade de o galo desbancar o leão como símbolo de reino animal foi cogitada. Ainda mais depois do sarro que um certo macaco abusado tirou do rei das selvas, e cuja história e respectivas imagens, como não poderia deixar de ser, já estão bombando nas redes sociais e YouTube. Para quem ainda não viu, passo a resumir: acostumado a brincar e mexer com todo mundo no zoológico, o macaco peralta foi desafiado a, digamos, chutar o traseiro do leão, para provar sua coragem. Aposta feita, o macaquinho esperou pela tradicional cochilada real para cumprir seu intento. O que foi feito em meio à maior algazarra de toda bicharada, atraída pelo insólito desafio.

O que se viu a seguir foi um corre-corre dos diabos, que rapidamente extrapolou os muros do zoológico e adentrou pelas vielas dos bairros adjacentes, com o leão doido para vingar a honra ferida. Corre pra cá, corre pra lá, até que o macaco se viu encurralado num beco sem saída. Com o leão nos calcanhares, enfiou a cara num jornal que achou no chão, e esperou pelo pior.

“Ei neguinho, por acaso você viu um macaco entrando nesse beco?”, vociferou, babando de raiva. E o macaco respondeu, após segundos que pareceram uma eternidade: “Por acaso é aquele macaco que chutou a bunda do leão?” “Caraca, não brinca que já deu aí no jornal!? Tô ferrado! Esse pessoal da imprensa é f…!

Moral da história: o mundo dá voltas, mas há certas coisas que não mudam.

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Ivan Berger é jornalista, Santos, SP